Crítica
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Sinopse
Johannes e Signe são atravessados inapelavelmente pelo luto quando perdem um filho. Ele, cineasta, ela, professora, precisarão encontrar forças para retomar suas rotinas, mesmo que aparentemente não as tenham.
Crítica
Muitos acreditam que arrancar um curativo de vez é menos doloroso do que retirá-lo aos poucos. O diretor dinamarquês Nils Malmros parece compartilhar deste pensamento, ao menos é a impressão dada pelos primeiros minutos de Tristeza e Alegria. Sem rodeios, Malmros expõe sua ferida na sequência inicial, em que o cineasta Johannes (Jakob Cedergren), após retornar de uma palestra, é recebido em casa por seus sogros com o anúncio de uma tragédia. Sua esposa, Signe (Helle Fagralid), uma paciente maníaco-depressiva, acaba de matar Maria, a filha do casal de apenas nove meses, em um surto psicótico, que lhe levou a cortar a garganta da criança com uma faca de cozinha.
O choque só aumenta quando sabemos que o acontecimento é baseado em uma experiência real, vivida por Malmros em 1984, quando se preparava para apresentar seu filme, A Bela e a Fera (1983), no Festival de Berlim. Trata-se, portanto, de uma obra autobiográfica, algo recorrente na filmografia do diretor, que no início da carreira utilizou suas experiências para realizar uma trilogia sobre a juventude, da qual faz parte seu mais famoso longa, A Árvore do Conhecimento (1981). E, mais recentemente, em Facing The Truth (2002), no qual narrou a trajetória de seu pai, Richard Malmros, um dos mais renomados neurocirurgiões da Dinamarca.
Tamanha proximidade com o material torna cada decisão narrativa muito delicada, podendo se transformar mais em um empecilho do que em um trunfo. Talvez ciente deste fato, Malmros busque um afastamento forçado no primeiro ato do longa, para que os sentimentos enclausurados não sufoquem sua história. Esta decisão pode explicar a aparente passividade com que Johannes, o alter ego de Malmros, lida com a situação em um primeiro momento. Das conversas com a sogra aos pequenos gestos, como esvaziar as mamadeiras da filha, a reação do personagem se mostra menos passional do que o esperado, ainda que Johannes desabe emocionalmente ao dar a notícia a seus pais. A incredulidade poderia motivar tal comportamento, mas, de qualquer modo, causa certa estranheza no espectador.
A frieza, aliás, tão relacionada ao cinema dinamarquês, se faz presente em outros elementos, como no modo direto com que alguns personagens se manifestam – o advogado que não vê solução para o caso, o inspetor de polícia que pergunta tranquilamente se Johannes gostaria de ver as fotos da perícia – e também na ambientação. A casa do cineasta, a funerária, a clínica psiquiátrica, a igreja, o tribunal, todos os cenários são construídos com minimalismo, em tons monocromáticos e assépticos, ressaltados pela fotografia melancólica e acinzentada. Há apenas duas exceções a essa regra. Uma é o apartamento de Signe, com sua decoração “burguesa ultrapassada”, como define Johannes. A outra está nas locações dos filmes do diretor, baseados na obra de Malmros. São escolhas que dão vida e cores às paixões de Johannes: sua esposa, o cinema e também a jovem atriz protagonista de dois filmes do cineasta, que se torna seu fetiche – a cena da sala de edição, em que admira as fotos da garota, é emblemática – e causa atritos em seu casamento.
No segundo ato é que Malmros realmente deixa clara sua intenção com a realização do longa. O diretor abandona os desdobramentos futuros da tragédia para revisitar o passado do casal, quando Johannes revela a um psiquiatra todas as passagens de seu relacionamento com Signe, apresentadas em flashbacks. A partir deste momento, Malmros utiliza o cinema como verdadeiro instrumento de terapia para externar sua culpa. Pois em nenhum momento o longa busca a absolvição de sua esposa, já que ela não pode ser responsabilizada por atos decorrentes de sua doença. “Nós somos culpados por não ter cuidado de você”, afirma Johannes.
Não deixa de ser uma atitude corajosa de Malmros, uma vez que evidencia traços não muito agradáveis de sua personalidade através de Johannes: egocentrismo, egoísmo e um ar de superioridade intelectual. Características que se apresentam como fatores que contribuíram ativamente para a piora do estado psicológico da esposa. Este sentimento de responsabilidade leva diretor e personagem a buscarem algum tipo de redenção, fazendo dessa dor inimaginável uma ferramenta para a união, e não para a separação. A tragédia faz aflorar com mais intensidade o amor de Johannes por Signe, que sempre existiu, mas em um nível diferente. E Malmros acredita no poder deste amor, que os protagonistas, Cedergren e Fagralid, representam com muita dignidade.
Em um relato tão pessoal é sempre complicado saber o quanto do apresentado é verídico ou romanceado. Algumas passagens parecem improváveis – como a atitude dos pais dos alunos de Signe, que fazem um abaixo-assinado por sua volta, mesmo sabendo de seus problemas – mas felizmente não chegam a ser totalmente implausíveis. O epílogo, que adentra de vez o terreno da metalinguagem, também é discutível, na medida em que não soa naturalmente inserido na narrativa. Mas, ao mesmo tempo, se mostra fundamental para os propósitos de Malmros. Ao saltar no tempo, para em seu final retornar aos momentos que antecedem aquilo exibido na primeira cena, o cineasta atende a um pedido da esposa, deixando uma lacuna propositalmente nunca mostrada, a imagem da morte da filha.
Assim, Malmros exorciza de vez seus fantasmas e fecha diversos ciclos, entre eles o de sua carreira, já que afirmou ser Tristeza e Alegria o seu último trabalho. Um filme-testamento que, mesmo com todas as suas irregularidades evidentes, possui uma força difícil de ser ignorada.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Leonardo Ribeiro | 6 |
Chico Fireman | 7 |
MÉDIA | 6.5 |
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