Troca Surpresa

Crítica

A cada temporada, plataformas de streaming ampliam seus catálogos com volume significativo de produções de Bollywood. Essas obras faladas em hindi são marcadas por estética vibrante, músicas contagiantes, danças envolventes e celebração dos costumes locais. Contudo, é raro encontrar trabalhos que questionem, ainda que sutilmente, as obsolescências culturais, especialmente aquelas relacionadas à religião e à definição dos papéis de gênero na sociedade indiana. Troca Surpresa, dirigido por Kiran Rao, reserva espaço para esse tipo de reflexão, envolvendo o espectador com críticas delicadas, mas incisivas, escondidas sob o véu de narrativa repleta de humor.

No enredo, acompanhamos Phool (Nitanshi Goel), jovem cuja vida sofre reviravolta após seu casamento com Deepak Kumar (Sparsh Shrivastava). Logo após os festejos, o casal embarca em trem rumo ao novo lar, distante da vila onde Phool cresceu. No entanto, ao desembarcarem, Deepak se confunde ao encontrar outra mulher recém-casada vestindo o mesmo traje indiano convencional. Sem perceber o engano, ele acaba levando Jaya (Pratibha Ranta), que, ainda sonolenta, o acompanha sem questionar. A confusão desencadeia uma série de situações caóticas, expondo as expectativas e pressões culturais impostas às mulheres. Com leveza e inteligência, o filme irá transcendes a comédia inicial para oferecer reflexão sensível sobre a luta por autonomia feminina e desafios das normas. É nesse jogo de situações que o roteiro encontra sua força.

A condução de Kiran Rao é o grande triunfo dessa empreitada. Conhecida por Diários de Mumbai (2010), drama que já fugia aos padrões de Bollywood, a cineasta demonstra, em seu segundo trabalho, domínio ainda mais apurado. Aqui, ela utiliza os códigos tradicionais de sua terra natal para subvertê-los de maneira engenhosa. Sem atropelar o ritmo da trama, Rao entrega narrativa repleta de camadas, na qual as críticas ao patriarcado não são óbvias, mas, sim, meticulosamente construídas. A jornada proposta ao espectador exige atenção aos detalhes e paciência para perceber os subtextos.

Boa parte desse impacto se deve às atuações de Nitanshi e Pratibha, que interpretam jovens de mundos distintos, mas conectadas pelo mesmo desejo de autonomia. Enquanto busca respostas no conhecimento, a outra encontra força nos vínculos familiares. Ambas entregam performances seguras, conferindo humanidade às suas personagens. No entanto, a complexidade prometida por Kiran às vezes fica de lado, deixando algumas questões mal examinadas, como se a diretora tivesse receio de abandonar o feel-good movie e aprofundar certos conflitos.

Troca Surpresa é produção que equilibra concessões e abordagem progressista, apresentando-se como grata novidade no balaio de projetos semelhantes. Kiran Rao, ainda em processo de experimentação dentro de seu próprio espaço criativo, desponta como nome promissor a ser acompanhado de perto. Até agora, ela tem demonstrado consistência em suas escolhas, mesmo ao lidar com concessões visíveis que equilibram práticas e inovações. Seu trabalho sugere caminho seguro, mas que ainda pode surpreender ao abraçar maior ousadia no futuro.

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Victor Hugo Furtado

Fanático por cinema e futebol, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Feevale. Atua como editor e crítico do Papo de Cinema. Já colaborou com rádios, TVs e revistas como colunista/comentarista de assuntos relacionados à sétima arte e integrou diversos júris em festivais de cinema. Também é membro da ACCIRS: Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e idealizador do Podcast Papo de Cinema. CONTATO: [email protected]

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