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Sinopse

Giulia está à beira de uma crise de nervos: o marido folgado é sustentado por ela, o afilhado a insulta, os amigos não prestam atenção no que diz e o chefe machista prefere contratar jovens influenciadoras digitais a promovê-la. Depois de um tratamento experimental, Giulia passa a dizer e fazer tudo o que pensa, sem filtros. Começa uma transformação radical em sua vida.

Crítica

Troca Tudo! (2020) constitui um filme feito para a sua personagem: todas as situações acontecem por causa dela, sob medida para afetá-la e impulsioná-la a agir. A extensa galeria de coadjuvantes se define em relação à heroína: são o marido folgado, o ex-marido, o afilhado, a melhor amiga superficial, o chefe machista, a adversária na empresa. Giulia se encontra em fase de estresse máximo, representando a rara figura sã num mundo de loucos. As comédias populares gostam de brincar com estes extremos radicais: ou o herói se converte no grão de loucura (e liberdade) dentro de uma sociedade tediosa, ou se transforma no único racional em meio aos selvagens. A heroína desta história italiana, adaptada do filme chileno Una Mujer Sin Filtro, se depara com praticamente todos os problemas possíveis a uma mulher de quarenta anos: crise no relacionamento, na empresa, com os amigos, com os homens machistas na rua, com o trânsito, com o próprio corpo, com o vizinho barulhento. O princípio da gradação age com rapidez: existem inúmeros indícios de que esta mulher vai explodir, cabendo ao espectador colher os frutos do descontrole. Existe um prazer em assistir a uma figura contida desempenhando aquilo que muitas pessoas gostariam de fazer, porém não podem: mandar o chefe ao inferno, ridicularizar homens grosseiros etc.

Aos brasileiros, esta iniciativa encontra equivalentes em algumas obras nacionais: De Pernas pro Ar (2010), pelo retrato da inserção feminina nas empresas levando as protagonistas à exaustão por precisarem provar seu valor constantemente; Depois a Louca Sou Eu (2019), pelo registro tragicômico da saúde mental e da diversidade de tratamentos disponíveis, e Mulheres Alteradas (2018), pelo olhar a uma pressão social exercida especificamente sobre as mulheres. No universo das comédias internacionais, estabelece um paralelo com O Mentiroso (1997), no qual Jim Carrey se vê impedido de mentir, e After Life (2019 - ), série onde Ricky Gervais estima que não tem mais nada a perder, tratando as pessoas mal pelo prazer de fazê-lo. Assim, é difícil sugerir que a premissa traga algo novo – o valor do ineditismo passa longe da ambição do diretor Guido Chiesa. No entanto, ele foge às principais armadilhas dessa premissa: o gaslighting, ou seja, o tratamento de toda mulher como histérica e desequilibrada emocionalmente; o conservadorismo de lhe atribuir um novo romance para colocar a vida nos eixos, e a submissão às normas para ser aceita. A modesta, porém certeira subversão, se encontra na perspectiva da explosão como algo positivo e irreversível (“Não dá para colocar a pasta de dente de volta no tubo”, explica um guru). O filme evita a defesa da moral e dos bons costumes enquanto única forma de felicidade.

Em consequência, o projeto encontra um viés terno e terapêutico. O filme insiste em ridicularizar os personagens coadjuvantes ao invés da protagonista, percebida com respeito. Giulia participa de uma evolução mais complexa do que o simples prazer da inconsequência: esta diretora de marketing descobre o potencial destrutivo de suas falas, precisando encontrar o meio-termo entre a raiva e a repressão, ou ainda entre o confronto e a autopreservação. A relação com o guru holístico interpretado por Neri Marcorè transparece esta ambiguidade: o homem passa de colega carinhoso a charlatão, então a pessoa confiável, e mais uma vez a um profissional questionável, em questão de poucas cenas. Caberá ao espectador o veredito final a respeito da eficácia do tratamento. Embora a mensagem final sobre encontrar a si mesma e descobrir seus desejos aproxime o roteiro do manual de autoajuda, ela mantém os questionamentos dentro da ótima da investigação, ao invés da solução. Em outras palavras, o roteiro jamais sugere que a vida de Giulia melhorará magicamente a partir do colapso, afirmando apenas que ela poderá, enfim, refletir sobre si própria. A conclusão em aberto acena à perspectiva de reavaliação: desconhecemos as próximas atitudes da protagonista, mas sabemos que ela se encontra em paz.

Neste processo, o texto encontra espaço para parodiar, ainda que sutilmente, o mundo superficial dos influenciadores digitais, o império das fake news (a jovem insiste que Ibiza é capital da Espanha, defendendo-se com a frase “Essa é a minha opinião, e você precisa respeitá-la”), a esquerda caviar representada pelo pintor e o empreendedorismo hipócrita ilustrado pelo jovem chefe. A família está curiosamente ausente na vida de Giulia, para quem os laços eletivos se revelam mais importantes do que aqueles de sangue (vide a amiga da academia, a amiga dos gatos). Nota-se a liberdade de uma personagem sem satisfações a dar para os pais, para a religião, para os vizinhos. Valentina Lodovini, atriz especializada em romances e comédias populares, encontra um tom excelente para expressar o misto de estranhamento com o mundo e reconforto consigo mesma, ou para alternar entre tons de humor patético, físico e de constrangimento. A direção de arte, o figurino e os acessórios tomam a precaução de depositar a comicidade sobre os homens (a camisa de bolinhas de Ottavio, o corpo desleixado de Raf) ao passo que preserva a imagem da heroína. Felizmente, ela não precisa cortar os cabelos, emagrecer nem aumentar o decote para se sentir empoderada – o discurso busca uma forma de completude para além da aceitação superficial.

É certo que Troca Tudo! poderia refinar diversos aspectos, a começar pela trilha sonora genérica, servindo de transição entre cenas (marcando aquele espaço onde, na televisão, devem ser inseridos os intervalos comerciais). Além disso, Chiesa tinha a possibilidade de usar a linguagem cinematográfica para expressar humor e inadequação, mas propõe enquadramentos acadêmicos e uma dinâmica limitada . Em outras palavras, o projeto resulta impessoal em termos de direção – a integralidade do humor é depositada sobre o texto e o elenco. Os espaços de contemplação, poesia ou fricção também são excluídos: cada cena possui uma função muito clara, um conflito único com começo, meio e fim. A comédia resulta num produto convencional, porém interessante enquanto discurso social. Giulia testa diversas formas de liberdade – o descaso inconsequente, a humilhação daqueles que a machucaram, a fuga, o possível enlace amoroso – descritas na forma de um processo orgânico, sem julgamentos morais. Neste encontro de soluções que fogem aos extremos, de ordem mais psicológica do que social, a comédia encontra sua força e fragilidade. A força vem da investigação atípica da psique de uma personagem de comédia popular, e a fraqueza, da incapacidade de propor transformações estruturais ao universo opressor, depositando a responsabilidade de mudanças nas costas da vítima.

Filme visto online no 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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