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Crítica


7

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1 voto 8

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Sinopse

Khadija adormece no metrô após um longo dia de trabalho. Ela acorda no fim da linha e não tem alternativa, senão voltar a pé para casa. Em sua jornada noturna, a mulher de 58 anos se vê obrigada a pedir ajuda e a ajudar.

Crítica

Trópico Fantasma não é um filme de enunciados, mas de gestos e meneios indicativos. A jornada noite adentro de Khadija (Saadia Bentaïeb) é repleta de sinais. Ao adormecer no metrô, depois trabalhar faxinando um centro comercial, ela se vê praticamente sem alternativas, obrigada a perambular a pé pela madrugada rumo à sua casa. A maneira de cobrir a cabeça remete à fé muçulmana, algo não utilizado pelo cineasta Bas Devos para situa-la essencialmente como uma forasteira passível de sofrer. Em momento nenhum a religiosidade e/ou a nacionalidade da personagem é frontalmente abordada, assim sendo basicamente intuída pelo figurino. A fotografia a cargo de Grimm Vandekerckhove propõe composições dentro de uma razão de aspecto incomum ao cinema comercial – quadrada, sintomaticamente refutando a ideia da horizontalização do scope. Há a construção de uma atmosfera algo onírica, inclusive pela forma como as pessoas se comportam, vide a sugestiva petrificação do enfermeiro enquanto testemunha o resgate do morador de rua fora do plano.

Mais que o acúmulo de experiências em prol de um possível discurso político-social, Trópico Fantasma fomenta reflexões de contornos existenciais. Não à toa, a história acontece à noite, quando o estrépito da cidade é menor, ou seja, ideal às observações que vão além da superficialidade. Nesse sentido, é importante o modo como o realizador acumula indagações acerca da funcionalidade das coisas, dos espaços e de como nos relacionamos com eles. E a chave para essa pretensão estão na cena inicial, simplesmente uma sala perdendo a iluminação enquanto Khadija, em off, fala a respeito da passagem do tempo sinalizada pela rotação que muda a face da Terra em relação ao sol. Dá para compreender nas entrelinhas que Khadija tem uma perspectiva muito singular sobre o shopping center no qual labuta diariamente. Para ela, se trata de um espaço de esforço e labor. Talvez para boa parte dos frequentadores, seja um lugar de comer, namorar, encontrar amigos, passar o tempo, etc. É constante esse subentendimento do intransferível na associação com todos os cenários.

Ainda dentro da prevalência dessa ponderação, há a consecução de elementos/objetos destituídos momentaneamente de sua serventia básica. O ônibus que representa a solução dos problemas da protagonista permanece parado por estar fora de serviço. O caixa eletrônico, que igualmente poderia servir para atenuar as dificuldades de Khadija, acusa um problema monetário, assim perdendo sua atribuição natural. Do mesmo jeito, a máquina capaz de fornecer o chá, não está capacitada para isso, lacuna preenchida pela ação humana adiante estendida numa bondade insuspeita. E essa consecutiva negação do funcionalismo é demonstrada, principalmente, pelo comportamento da câmera. O dispositivo se demora mais que o esperado nos vislumbres dessas peças circunstancialmente destituídas de porquês. Numa sociedade em que as pessoas frequentemente são medidas por suas incumbências profissionais, pelo quanto “contribuem” ao todo, dentro de uma perspectiva na qual todos são entendidos como engrenagens, essa noção se torna uma provocação oblíqua.

Em certos instantes, Trópico Fantasma esgarça essa vontade de deixar o relevante nas entrelinhas, correndo um risco relativamente calculado de se tornar excessivamente lacônico. Bas Devos pede ao expectador que apreenda além do visível, a priori, e que simultaneamente rompa a membrana das preconcepções para entender gestos aparentemente aleatórios. Eles são partes essenciais da meditação sobre como as experiências pessoais e sociais influenciam o meio e lhe conferem significado. Componentes como a diferença geracional entre mãe e filha não são escrutinados, mas estão ali, à disposição para quem se apropriar do filme a partir de sua capacidade de evocar o que não está contemplado na superfície. Khadija cobre a cabeça e tem um comportamento mais tradicional. A filha anda pela noite, madeixas à solta, vista num corriqueiro ritual de conquista típico da adolescência. Num tom profético alguém diz, cheio de consternação: “isso aqui vai mudar bastante”, se referindo às futuras obras nas redondezas. Porém, o longa mostra a intermitência das transfigurações, ainda que a maioria passe despercebida. Nem a morte impõe inércia às pessoas e aos meios.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
7
Chico Fireman
7
MÉDIA
7

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