float(13) float(3) float(4.3)

Crítica


6

Leitores


3 votos 8.6

Onde Assistir

Sinopse

A multiartista estadunidense Garnett faz do encontro com o pai até então desconhecido um percurso de arqueologia afetiva, este desdobrado num processo de investigação das imagens de um filme realizado nos anos 1970.

Crítica

Mariah Garnett possui um senso de humor peculiar. A história de sua família poderia ser contada por um viés trágico, ou enquanto sintoma das guerras que marcaram a Irlanda. Afinal, a cineasta conheceu o pai apenas na fase adulta, já que os pais foram separados devido aos conflitos religiosos do país (eles formavam um “casal misto”, com um protestante e uma católica), privando a garota de uma figura paterna. No entanto, quando visita pela primeira vez com o homem que nunca a criou, Garnett se propõe a registrar a estadia. Ela detalha os sucessos e fracassos em suas tentativas de aproximação, assim como em suas intenções cinematográficas. A diretora brinca de reencenar os testemunhos de David, faz piadas com moradores locais, ironiza a si mesma em letreiros. Para lidar com um período traumático, Trouble (2019) opta pela autoparódia enquanto ferramenta capaz de escancarar conflitos e ao mesmo tempo proteger os envolvidos por meio do distanciamento inerente ao humor. Se alguma revelação foi ofensiva ou excessivamente explícita, sempre existe a possibilidade de argumentar que se tratava “apenas de uma brincadeira”. O pressuposto da leveza costura de maneira inesperada a narrativa sobre amores desfeitos, crianças órfãs e uma nação em guerra.

Enquanto estrutura de roteiro, a cineasta transforma o filme num diário, ou ainda espécie de confessionário. Ela assume a postura da protagonista que verbaliza cada pensamento ou intenção, como se tivesse que prestar contas ao espectador. Confrontada à dificuldade de filmar uma conversa importante ou se apropriar de materiais raros a respeito dos familiares, ela justificativa o fracasso por meio dos letreiros: “Apresentei meus trabalhos numa galeria. David não compareceu”. (A diretora sequer consegue chama-lo de “pai”). A autoexposição soa ao mesmo tempo corajosa, visto que o encontro está longe de oferecer uma reconciliação plena entre as partes, e um tanto acanhada, por se contentar com a exposição metalinguística de recursos mal sucedidos, sem procurar alternativas para contorná-los. Para fazer a narrativa avançar, o filme depende demais destes letreiros em primeira pessoa, com grafia curiosa e posicionados no centro exato do enquadramento. Garnett ora narra com sua própria voz, ora explica o que está sentindo e qual efeito pretende obter a partir de cada cena. O recurso aparenta humilde em sua comunicação, mas também superficial enquanto forma de comunicação. A cineasta se esforça para converter a confissão de fragilidade em valor de franqueza.

Trouble surpreende principalmente pela representação jocosa do pai ausente, que sequer tinha sido informado sobre o fato de constituir o tema de um documentário. Nos inúmeros casos em que a cineasta possui a gravação sonora, porém não as imagens de David, ela decide interpretar o próprio pai, vestindo uma roupa parecida e dublando-o da melhor maneira possível. A conversa em tom despojado assume o teor de farsa por meio do travestimento assumidamente precário. Talvez Garnett esteja homenageando o pai ao se apropriar de suas palavras e preservá-las em imagens; talvez esteja apenas ridicularizando-o, fazendo chacota de confissões contadas em tom de confiança. O documentário jamais afasta a impressão de vingança, ou seja, de um acerto de contas da criadora com o homem distante convertido numa versão patética de si mesmo. A namorada dele é representada por uma atriz transexual, com muito respeito e comprometimento, ainda que o teor LGBT desta encenação soe artificial dentro do conjunto. Por que acrescentar estas representações jocosas do travestimento dentro da chave do humor autodepreciativo, especialmente para recriar a história de um homem heterossexual e cisgênero, sem qualquer contato aparente com a diversidade sexual e identitária?

Ao menos, em sua estrutura voluntariamente caótica do roteiro e narrativa, o projeto encontra uma alternativa ousada para dialogar com a história da Irlanda, país com o qual a diretora norte-americana não possui familiaridade. Os conflitos armados, a perseguição nas ruas, a violência oficial ou velada se infiltram muito bem no cotidiano dos indivíduos – além da narrativa dos pais, Garnett encontra anônimos pelas ruas dispostos a evocar o impacto do embate entre protestantes e católicos em suas trajetórias pessoais. A descrição da violência em Belfast adquire um caráter não-linear, nem excessivamente explicativo. Visto que a diretora possui dúvidas quanto aos fatos, ela se contenta com a posição de observadora atenta do que seus entrevistados possam lhe dizer. Enquanto isso, manipula alegremente o material de arquivo. A cena de um desfile nas ruas, por exemplo, é deformada através da extrema câmera lenta, da granulação manipulada do vídeo e do som de bombas em looping. Mesmo que alguns efeitos soem como meros preciosismos, eles contribuem à sugestão de uma História afetiva, fragmentada e dispersa, sem a vocação de esclarecer minúcias, apenas evocar a mecânica básica do ódio às diferenças.

Enquanto isso, alguns gestos de ficcionalização podem ser questionados. Garnett sublinha o fato de David não saber que a filha pretende fazer um filme a seu respeito, mas como ele não estranharia a presença da câmera constante em seu rosto? A diretora revela uma gravação sobre a adolescência de David, que este mesmo jamais viu, porém na hora da exibição de tal vídeo, cobre com seu corpo a quase integralidade do plano, não permitindo ao espectador presenciar a reação do pai. Muitas decisões cinematográficas soam improvisadas, apressadas, o que às vezes resulta em cenas potentes pelo senso de oportunidade (a visita à festa nacional), porém em outros instantes, chama mais atenção pelos tiques e truques do que pela potência da representação (o travestimento no bar). De qualquer modo, Trouble oferece uma experiência vívida, de ótimo ritmo do início ao fim, aproximando espectadores (irlandeses ou não) de um conflito repleto de tabus. Servindo-se do humor às vezes exagerado, propõe uma ponte entre pai e filha distantes, e também entre a contemporaneidade e o passado. O cinema se encarrega de unir, ainda que simbolicamente, alguns opostos com pendências a acertar. Enquanto a conciliação não ocorre, Garnett diverte-se com o jogo de tentativa e erro.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *