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Crítica


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Sinopse

O cineasta Fábio Kow investiga a História por meio da trajetória de sua avó, Tsecha Szpigel, judia polonesa que sobreviveu à sanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Crítica

A intimidade e a História se entrelaçam em Tsé, documentário de cunho familiar no qual o cineasta Fábio Kow lança luz sobre a sua avó, Tsecha, personagem fascinante pela trajetória de superação. Polonesa e judia, ela viu o pai, a mãe e o irmão mais novo serem exterminados, um a um, pela sanha brutal dos nazistas. Sobreveio a isso um perambular miserável pelas vizinhanças que pouco podiam fazer para ajuda-la sem colocar em risco a si próprias. Aos 14 anos a menina se deparou com um lado horrível da humanidade e, perseverando sabe-se lá como, sobreviveu a tudo isso, dando origem a uma prole desenvolvida adiante no Brasil, do outro lado do Oceano Atlântico. O longa-metragem é narrado em primeira pessoa e utiliza diversas imagens de arquivo pessoal, num singelo resgate das memórias de infância do realizador que, assim, se coloca como parte efetiva de tudo o que está sendo construído na tela, ou seja, também como um resultado desse desejo de viver.

Tsé compensa a imobilidade da personagem principal, que posa à câmera do neto discorrendo sobre causos aterradores do passado, com uma boa seleção de imagens de arquivo e desenhos que dinamizam a narrativa. Os dispositivos utilizados, porém, não são meras ferramentas, pois carregam uma relação e(a)fetiva com o que o filme apresenta. Por exemplo, os excertos de musicais dos anos 40, especialmente os protagonizados por Fred Astaire, têm uma relação direta com o passado de Fábio. Ele e os avós assistiam juntos a esse tipo de produção nas tardes compartilhadas numa infância longínqua. Há a segunda camada, criada com habilidade na associação da leveza dos passos de um dos maiores astros da Hollywood da Era de Ouro com a promessa de alegrias que sucedeu os horrores da Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir de uma fala do avô que, ainda no navio que trouxe o casal ao Brasil, prometeu dançar diariamente a fim de finalmente ser feliz.

Transcorrendo em ordem cronológica, Tsé utiliza as lembranças da protagonista como linha mestra e as falas dos netos como principal complemento. O resgate histórico passa, então, não somente pelas rememorações da polonesa atravessada por toda sorte de infortúnios, mas igualmente pelas marcas deixadas por ela na primeira geração nascida totalmente no Brasil, na qual Fábio invariavelmente se insere como representante centralizado. Irmãos e primos, portanto, auxiliam o cineasta a fazer a arqueologia do passado de informações imprecisas, passíveis de adulterações pela memória. Em dado momento, o método é discutido abertamente, com as dúvidas expostas. Principalmente a viagem à Polônia deixa evidente essa breve vontade de, além de falar da jornada de Tsecha, entender o fazer cinematográfico mediante tantas inconsistências. Pena que o conjunto logo retome sua vocação retilínea, não explorando tanto os desvãos desse processo de gerar discurso.

Mesmo preso a um formato básico do qual pouco se distancia, Tsé é um documentário afetuoso. Operando na absoluta contramão das escolas documentais que pregam o distanciamento do objeto, Fábio Kow faz de si personagem, se achegando cada vez mais de sua protagonista, não se furtando de mostrar a parcialidade de uma abordagem abertamente subjetiva e passível de deturpações justamente por conta da proximidade com a avó. Infelizmente ele perde oportunidades valiosas para refletir acerca dessa posição singular e de como isso influencia a sua perspectiva. Porém, a intenção é claramente a de homenagear uma mulher que lhe serviu de esteio moral, de porto seguro na meninice, e cujas andanças por um mundo frequentemente hostil lhe serve evidentemente de inspiração. Some a isso a criatividade no entrelaçamento de suportes distintos e o resultado é um filme que tangencia certas complexidades cinematográficas, sem deter-se nelas, pois absorto na missão de fazer uma sensível exumação dos seus a fim de entender coisas como raízes, História e carinho familiar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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