Crítica
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Crítica
A luta contra a corrupção constitui uma das bandeiras mais potentes, e também mais retoricamente perigosas, de qualquer grupo em busca do poder. No Brasil, tanto Jair Bolsonaro quanto Fernando Collor se elegeram com o discurso do combate rápido e eficaz à corrupção nas instituições. Historicamente, dos governos autoritários de esquerda aos regimes nazifascistas da direita, a promessa de acabar com privilégios, violações de direitos e apropriação da máquina pública em benefício próprio surge nas palavras de praticamente todo autocrata ou aspirante a ditador. A promessa possui forte apelo popular: quem não gostaria de eliminar os vícios do sistema? No entanto, os autoproclamados salvadores da pátria jamais explicam ao certo de que maneira pretendem vencer uma estrutura que se retroalimenta há décadas (ou séculos, dependendo do caso). Em Turma de 83 (2020), o policial Vijay Singh (Bobby Deol) constitui um destes messias. Trapaceado pelos superiores e traumatizado após a perda da esposa, decide que está farto do mundo segundo as regras, e que qualquer mudança real na sociedade indiana decorreria do ataque secreto aos bandidos. O protagonista decide treinar um grupo de alunos para “institucionalizar o abate de gângsteres por policiais”, em suas palavras.
A discussão proposta por esta história baseada em fatos dialoga com alguns dos problemas mais urgentes das sociedades contemporâneas, especialmente nas grandes cidades com forte desigualdade de renda. O espectador se depara com uma aplicação do conceito segundo o qual os fins justificam os meios: a corrupção das “pessoas de bem” seria desculpada por visar a corrupção dos malvados. Dentro da academia policial onde leciona, Vijay cria uma milícia armada e perigosa, fora dos registros oficiais, e treinada para atacar qualquer criminoso considerado digno de morrer. Cria-se uma máfia para combater a máfia; burla-se as regras para punir aqueles que burlam as regras. O protagonista perderá o controle de seus pupilos, cada vez mais sedentos por sangue e embriagados pelo poder que adquirem, além das vantagens financeiras decorrentes de seus atos. Grandes filmes da história do cinema foram baseados na reflexão sobre a legitimidade da vingança, de Touro Indomável (1980) a Assassinos por Natureza (1994) e Dogville (2003), sem mencionar uma dezena de obras de Alfred Hitchcock. O diretor Atul Sabharwal tinha igual oportunidade de criticar os falsos salvadores e representar a sobrevida dos sistemas muito mais fortes do que os indivíduos que pretendem derrubá-los.
No entanto, Turma de 83 possui um discurso no mínimo ambíguo em relação às ilegalidades retratadas. A narrativa se divide em três partes muito precisas: o primeiro terço serve a construir a figura de Vijay enquanto mito, jamais visto na sala de aula, cercado de boatos sobre sua vida pessoal e seus possíveis atos de heroísmo no passado. Somos convidados a admirá-lo e temê-lo antes mesmo de descobrirmos seu rosto. O terço central expõe a formação do grupo de assassinos, agindo livremente por Mumbai até fugirem ao controle do mentor, ao passo que o terço final confronta entre estas duas visões de mundo: a do professor, que queria “apenas” executar os malvados, e a dos alunos, que pretendem executar qualquer possível obstáculo pelo caminho. Há limites entre a violência “do bem” e a violência “do mal”? “Para manter a ordem, às vezes é preciso violar a lei”. A frase é repetida duas vezes na trama: a primeira, na introdução, disparada por um rapaz impulsivo no início de sua carreira policial, e no término, quando percebemos que, dentro da lógica do roteiro, ele tinha razão. Apesar de todas as irregularidades cometidas pelos cinco policiais e pelo líder informal da gangue, este último será desculpado por um letreiro final, esclarecendo o objetivo louvável de lutar contra a corrupção, ou seja, as boas intenções desculpam os métodos criminosos. Os fins acabam por justificar os meios.
A estrutura narrativa torna esta demonstração ainda mais contestável. Provavelmente na busca de se colar aos fatos, a montagem efetua diversas idas e vindas entre anos muito próximos (de 1982 a 1981, então a 1983, de volta à 1982, e saltando para 1988), sem justificar uma condução tão fragmentada. Os personagens narram a história em off, explicando aquilo que as imagens não conseguem elucidar por si próprias. “Encontramos provas contra os cabeças do grupo. Fizemos prisões e até processamos”, relata um deles, sem que vejamos quaisquer indícios dessas ações em tela e, principalmente, como conquistaram tal façanha. A direção depende da narração para avançar a trama, para preencher lacunas históricas e informar o espectador sobre processos complexos nunca abordados enquanto tais. De que maneira os cinco jovens inexperientes domaram as duas maiores facções do país? Como aprenderam a encobrir os traços de suas ações, e de que modo passam dos garotos tímidos a assassinos sanguinários? Talvez o elemento mais interessante fosse compreender a transição progressiva, testemunhar a corrupção de valores ocorrendo ao vivo, diante dos nossos olhos. Sabharwal se limita a avisá-la ao público, saltar entre períodos cruciais (as maiores prisões, as principais brigas entre membros da gangue) como se fizesse uma apresentação resumida daquele período histórico.
O filme chega a incluir rápidas explicações fatuais sobre a crise a greve dos trabalhadores do algodão, no entanto, jamais estabelece uma ligação entre esta situação e os desmandos do grupo. A “turma de 83” se torna isenta tanto de conflitos morais (eles nunca hesitam antes das mortes, nem repensam seus atos a posteriori) quanto de relações sociais (não conhecemos quase nada sobre suas famílias, suas origens, suas casas, seus sonhos de consumo e planos para o futuro). O discurso privilegia a ação, no sentido daquilo que pode ser observado externamente aos personagens: as perseguições, os tiros, as ameaças, as brigas. Os matadores são desprovidos de psicologia, com exceção talvez do próprio Vijay, quando percebe o monstro que criou. Bobby Deol desempenha muito bem este papel, elaborando um homem de olhar gentil e fala doce, em contraste com a postura convicta. Ele nunca sucumbe ao estereótipo do vilão, nem ao imaginário dos grandes chefes do crime. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito do quinteto de assassinos, cada um resumido a uma característica recorrente: o arrogante, o servil, o perito em tiros etc. Diante das cenas de tiros em ultra câmera lenta, da trilha sonora invasiva e deslocada (semelhante à trilha de um videogame na primeira metade da trama), e da edição excessivamente picotada (criando planos e contraplanos para o encontro de dois homens em silêncio), percebe-se que o filme prioriza o espetáculo à reflexão sobre o conteúdo político.
PS: A Tenente de Cargil (2020), outra produção recente da Netflix Índia, se iniciava com um estranhíssimo letreiro. Embora a história se dedicasse inteiramente à demonstração do machismo dentro da Força Aérea, o longo texto afirmava que o filme não defendia nada do que viria a mostrar, e que nenhuma representação dos acontecimentos reais poderia ser lida como uma interpretação verídica. A afirmação soava covarde e paradoxal. Consegue imaginar alguma das grandes obras do cinema sobre violência se abrindo com o aviso “Este filme não defende nada daquilo que ele afirma?”. Ora, Turma de 83 começa com um aviso semelhante. “Não alegamos nem sugerimos autenticidade. Não defendemos nem promovemos pontos de vista e opiniões expressados no filme”. Que absurdo seria esse? Um colega, crítico de cinema de um importante veículo da Índia, explicou que os processos judiciais contra filmes são comuns no país, e que muitos políticos influentes praticam e defendem a censura contra o cinema nacional. “É triste, mas os produtores precisam colocar esses letreiros. São precauções legais necessárias para evitar problemas mais tarde. O que importa de verdade é o filme que vem depois disso”, justificou. Triste, de fato.
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