Crítica


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Sinopse

Carter James é um cartunista que vê seguidamente frustradas suas tentativas de voltar para casa e encontrar seu cachorro. Ele é forçado a viver repetidamente um mesmo e terrível dia.

Crítica

Carter não está no melhor dos seus dias. Ele recém acordou, mas sabe que precisa partir. A garota ao seu lado segue dormindo, e talvez ele consiga sair do apartamento dela sem fazer barulho. Mas essa intenção fica apenas no... “talvez”. Quando a moça desperta e o vê já quase inteiramente vestido, reclama: “nem um beijo de despedida?”. Logo se entende a situação: os dois se conheceram na noite anterior, gostaram um da companhia do outro, e ela o levou para sua casa, onde transaram e ficaram juntos até o amanhecer seguinte. Mas a primeira impressão não é a que fica, e para desfazer qualquer mal entendido, ele permanece por mais um tempo. Tomam café, trocam ideias. Mas precisa partir, e ao chegar na rua, sem se dar conta esbarra em um homem que derrama a bebida que carregava na própria camisa. Sai reclamando, e chama a atenção de um policial. Esse começa a discutir com Carter, e em questão de segundos os dois estão em um conflito físico. Após dizer repetidas vezes “não estou conseguindo respirar”, protesto ignorado pelo outro, aquele que foi visto como agressor, mas era não mais do que vítima, se cala. Não há mais o que dizer, nem força para tanto. Tanto um quanto o outro são não mais do que Dois Estranhos. Com uma importante diferença: enquanto o policial é um homem branco, Carter era negro.

E que fique claro que ao se referir a Carter no passado, não se trata de um engano: ele está morto. Porém, não por muito tempo. Pois assim que desfalece, seus olhos voltam a se abrir. Mas não mais no chão de uma rua da cidade grande, mas na mesma cama daquela bela desconhecida com quem acabara de passar a noite. Seria apenas um déjà vu? O tempo parece ter voltado atrás – teria o rapaz ganho uma nova chance? Ele, a princípio, estranha, mas vai adiante. Quando as coisas começam a se repetir – a garrafa que cai e quebra em diversos pedaços, o homem que entra no prédio na hora em que ele sai, a moça que passa e sorri para ele, o desconhecido que caminha desatento – começa a se dar conta que está mais uma vez vivendo aquilo tudo. E assim, sabe também como irá acabar – a não ser que faça algo de diferente. Ao invés de dobrar para direita, segue pela esquerda. Corre, e não mais caminha. Esquiva do encontrão, mas mesmo assim atrai o oficial. Não adianta argumentar. Um tiro será dado. Mais uma vez, o jovem cairá ao chão inconsciente. Apenas para poucos segundos depois acordar na mesma cama daquela manhã.

Carter tenta fugir, mas também decide ficar. Revela o que está lhe passando para a garota ao seu lado, e até mesmo para o policial que terminará lhe perseguindo. Nada parece mudar o resultado fatídico: sempre acaba morto. Um conselho que recebe nesse processo termina por soar mais forte: se não pode vencê-lo, junte-se a ele. Quem sabe se, conversando com o guarda, os dois não acabam se entendendo e o pior deixa de suceder. Como acontece na maioria das vezes nos Estados Unidos, cabe mais ao negro esse esforço extra de compreensão do que ao branco, que alegar estar “apenas fazer o seu trabalho”. Porém, mesmo quando tudo parecia se encaminhar para um final, se não feliz, ao menos satisfatório e minimamente pacífico, a reviravolta acontece. O policial não vai deixar passar. Afinal, na sua frente está um homem negro, e como tanto lhe foi repetido, este sempre é suspeito. Portanto, não merece ser revistado, averiguado, julgado. Ele precisa ser morto.

Elaborado no auge dos protestos do Vidas Negras Importam, que tomaram conta dos Estados Unidos – e de grande parte do mundo ocidental – em decorrência do assassinato de George Floyd, um homem (negro) morto por policiais quando ia até uma mercearia para fazer compras, Dois Estranhos acaba adquirindo uma ressonância ainda maior do que, por exemplo, Uma Canção para Latasha (2020), outro curta-metragem norte-americano da mesma safra que, de igual forma, está indicado ao Oscar 2021. Porém, enquanto um tenta olhar para o passado de uma maneira poética para alertar a respeito dos perigos do futuro, este busca nas ferramentas da ficção provocar o impacto necessário – e, mais do que isso, urgente – para que uma mudança, enfim, ocorra. Não importa quantas vezes acorde, qual caminho decida trilhar, sair ou ficar, correr ou se esconder, fugir ou aparecer: o destino é sempre o mesmo. Tanto para o protagonista como para os milhares iguais a ele espalhado por todo o país – e pelo planeta, numa perspectiva mais ampla.

Defendida com garra por dois intérpretes com plena noção do alcance dos seus personagens, a trama tem em Joey Bada$$ (Mr. Robot, 2016-2019) e em Andrew Howard (Tenet, 2020) muito da sua força. Ambos estão entregues aos tipos que defendem, seja a vítima ou o algoz. A relação que desenvolvem ao longo de tantas repetições é vívida a cada retomada, e intensa mesmo diante da fugacidade que caracteriza cada uma das suas experiências. O homem que nada vê e tudo almeja destruir, ou o que apenas quer sobreviver, chegar em casa são e salvo para poder alimentar seu cachorro de estimação. Não é questão de domesticação de um ou submissão daquele, o problema é maior e mais complexo. Por isso que Dois Estranhos acaba fazendo mais sentido no original: Two Distant Strangers. Dois Estranhos Distantes. De mundos distintos. E é justamente essa distância que precisa desaparecer, na base, na fonte, na origem, e não no desfecho. Esse, afinal, estão todos cansados de conhecê-lo. Está mais do que na hora de olhar para a outra ponta dessa corrente. Afinal, é no primeiro passo que a diferença pode, enfim, ser feita.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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