Crítica
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Sinopse
Numa jornada de jejum e oração, Jesus Cristo passa 40 dias no deserto, onde acaba encontrando a figura do Diabo.
Crítica
A história de Jesus Cristo talvez seja o mais clássico exemplo da Jornada do Herói e, por isso, já foi explorada diversas vezes pelo cinema. Em Últimos Dias no Deserto, o cineasta colombiano Rodrigo García reimagina um episódio específico desta trajetória, baseando-se livremente na passagem do Novo Testamento que trata da viagem do Messias – aqui chamado por seu nome hebraico, Yeshua, e interpretado por Ewan McGregor – pelo deserto durante 40 dias de jejum e orações. Ao longo do caminho, além de confrontar a personificação do Diabo (também vivido por McGregor), que lhe impõe tentações e desafios, Jesus se depara com um drama familiar envolvendo uma mãe à beira da morte (Ayelet Zurer) e um pai (Ciarán Hinds) com dificuldades para se comunicar com o filho (Tye Sheridan).
Dentro deste recorte particular, García busca uma abordagem mais humana e menos religiosa para tratar da fé em seu sentido mais abrangente. Não faltam elementos e debates que remetem aos dogmas do cristianismo – fala-se de poderes divinos, de pecado, da figura de Deus vista pelo Diabo como alguém egocêntrico e deslumbrado com a beleza da própria criação, etc. – mas estes servem como complemento a um tema central com o qual o público pode facilmente se identificar, independente de crenças: a relação entre pais e filhos. O dilema da família – o pai desejando que o filho siga seus passos e continue vivendo no deserto, enquanto o garoto sonha em seguir para Jerusalém e construir seu próprio destino – encontra um claro paralelo na dinâmica entre Jesus e Deus. Assim como o personagem de Sheridan nutre respeito indelével pelo de Hinds, mas não concorda plenamente com suas atitudes, Jesus também se questiona sobre a vontade divina. A sensação de distanciamento em relação a seu Criador – que pode ser notada quando pergunta ao Diabo se Deus tem um rosto – gera uma conexão com o garoto que o leva a buscar solucionar os problemas da família da melhor maneira para todas as partes. McGregor assume com extrema competência o papel duplo, conseguindo transmitir a pureza e benevolência como Jesus e a malícia como o Diabo. Contando apenas com poucos detalhes de caracterização visual, o ator se vale da entonação da voz e de pequenos gestos – o momento em que Jesus acalenta a mãe enferma, as risadas sarcásticas do Diabo – para diferenciar estas figuras opostas.
A faceta irônica da encarnação diabólica acompanha alguns outros toques de humor que surgem com mais frequência do que se poderia esperar. Percebe-se uma tentativa de imprimir uma informalidade ao discurso, abrandando a natureza declamatória dos textos bíblicos. Em determinada cena, o próprio Jesus questiona suas escolhas no uso das palavras, concluindo que as respostas devem vir através de ações e não de frases prontas e lugares-comuns. A intenção de evitar a grandiosidade e o rigor que geralmente acompanham este tipo de história é extremamente válida, mas Últimos Dias no Deserto acaba ficando num meio-termo e a ponderação excessiva do protagonista termina refletida no tom geral do filme. Exceção feita a um acontecimento mais impactante, já próximo ao desfecho, os conflitos apresentados –mesmo os pessoais de Jesus – carecem de um maior peso dramático. Há uma aura contemplativa que envolve a trama, denotando uma procura por epifanias poéticas. Porém, as metáforas e simbolismos propostos por García – nos pesadelos de Jesus sendo perseguido por lobos ou se afogando, no encontro com a “velha/serpente” – parecem soltos, sem propósito definido, abrindo espaço para tantas interpretações, que seus significados se perdem. Em seu isolamento, Jesus busca respostas, mas na maioria das vezes recebe em troca apenas o silêncio da vastidão desértica, algo que se estende ao público. Esta indefinição é perceptível também na conclusão do longa, quando o cineasta realiza dois saltos temporais que soam deslocados. A intenção parece ser a de dar continuidade à temática do vínculo entre pais e filhos, mas, novamente, sem o peso necessário.
Existem qualidades no trabalho de García, especialmente na condução do elenco. Além de McGregor, Hinds, Sheridan e Zurer apresentam ótimas atuações. Toda a parte técnica também chama a atenção, como a trilha sonora minimalista de Danny Bensi e Saunder Jurriaans, e a bela fotografia de Emmanuel Lubezki. Trabalhando apenas com iluminação natural, o mexicano transforma o deserto da Califórnia em deslumbrantes paisagens do oriente, desta vez sem que seu virtuosismo chame demais a atenção para si – como em O Regresso (2015), por exemplo. Contando com estas importantes ferramentas, García foge tanto da via polêmica, de títulos como A Paixão de Cristo (2004), quanto da via carola (ou da parcialidade) de tantas produções cristãs voltadas exclusivamente a este público, encontrando um direcionamento digno, que proporciona espaço para a reflexão, mas que não chega a ter a força que poderia.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Leonardo Ribeiro | 6 |
Alysson Oliveira | 5 |
Ailton Monteiro | 6 |
Alex Gonçalves | 7 |
MÉDIA | 6 |
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