Crítica
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Sinopse
Falido, o cineasta brasileiro Fernando mergulha numa jornada internacional, por nações que falam português, em busca de pistas a respeito do passado violento do seu avô.
Crítica
Um Animal Amarelo é uma fábula de ecos, projeções, representações e reminiscências. Uma deambulação febril e lírica por territórios interligados pela língua portuguesa. Nele, há a trama fantástica (que comporta outras a retroalimentando) desenhada como uma aventura na qual o protagonista não se apresenta na condição de herói, tampouco senhor absoluto do próprio destino. Se assemelha, inclusive quanto à evocação da época colonial, a Tabu (2012), do português Miguel Gomes. O paralelo retórico com a realidade histórica é forte no âmbito da imagem. Um barco encalhado na faixa de areia moçambicana sinaliza a obsolescência do ímpeto extrativista das nações europeias que escravizaram africanos como se deles fossem proprietários naturais. O filme de Felipe Bragança é marcado por um escárnio tropicalista direcionado aos opressores eurocêntricos, tratados na atualidade como subprodutos ridículos de sua sanha agressiva, haja vista a natureza patética do cineasta, ora tratado como intruso malquisto, ora sujeito aos caprichos de seus interlocutores. Mesmo assim, Fernando (Higor Campagnaro) carrega a sina transmitida adiante por seu avô que portava um fêmur humano como amuleto. A entidade peluda e descomunal também é transferida como chaga hereditária.
O monstrengo não é necessariamente mal, mas uma presença ambígua. Em Um Animal Amarelo a ambivalência também está presente no homem terno que ama ardorosamente um guitarrista de dotes questionáveis, mas cultiva, ao gosto de seus antepassados, sonhos megalomaníacos e anacrônicos de enriquecimento ao sulcar a pedra para ver se dela surrupia riquezas. Estamos diante de um longa-metragem que apresenta o legado possivelmente como fardo e/ou benesse. Cineasta, Fernando cresce sendo constantemente visitado pelo amigo não imaginário capaz de lhe conectar com uma dimensão evocativa do outrora doloroso. O osso da sorte remete a esse tempo decorrido em que homens e mulheres negros tinham seus corpos vilipendiados ao bel prazer de uma branquitude incapaz de autocensurar a ilicitude moral de seus atos vis. A mágica é parte dessa equação ousada, em que, por exemplo, o toque no sexo alheio pode causar alterações literais na atmosfera e arremessar diretamente noutro continente, lá onde a pele alva significa morte. Tudo é narrado pelo timbre firme de Isabél Zuaa. A História é, assim, conduzida por uma voz negra.
Felipe Bragança aponta esqueletos e evoca fantasmas para moldar essa alegoria em que ordinário e extraordinário se fundem, argamassados por uma capacidade imaginativa admirável. Os moçambicanos não apenas retomam o trânsito de pedras preciosas, como as excretam dos próprios corpos. Ao invés de escavar o solo em busca da riqueza, eles a produzem, a utilizando na Europa como barganha para inverter uma lógica de poder. Catarina (Isabél Zuaa) é a rainha que mantém um pé na contemporaneidade, um no tempo remoto e ainda sinaliza o futuro. Na mão dela, Fernando, o cineasta cujo projeto de filmar foi interditado pelo produtor intrometido, é reduzido a um decalque de James Bond, um Indiana Jones terceiro-mundista que não vai além de ser uma imitação barata. Assim como tinha feito com a lógica dos super-heróis em Não Devore Meu Coração (2018), aqui o realizador também mescla mitos e ícones da cultura pop com os resistentes aos séculos. Em Um Animal Amarelo, figuras consagradas do cinema – o explorador, o gângster, o pirata, a regente, a femme fatale, o primeiro amor, o amigo imaginário – são dispostas contra o pano de fundo da História.
Nesse processo, Um Animal Amarelo ainda comenta o Brasil de hoje. Em dado momento, é possível ouvir, vindo diretamente da televisão, a fala da ex-presidente Dilma Rousseff e, adiante, jargões proferidos por Jair Bolsonaro, então eleito presidente da república. Interligando passado, presente, lendas e fatos, organizando isso a partir do discurso que utiliza a fabulação como uma força mobilizadora, Felipe Bragança exerce suas imensas liberdade e ousadia. Esta, especialmente, visível igualmente em personagens como a portuguesa com um clitóris de rubi – cujo sonho sintomático é substituir o coração por uma pedra preciosa –, o autointitulado barão isolado numa ilha supostamente em prol da Cultura e o ex-soldado que deixou uma filha para trás na África e atualmente é um comerciante “respeitável” com semblante de patife dos sete mares. O hotel de antes, indício da disposição conquistadora europeia, vira o quartel general da insurreição africana, ação que faz da estrutura uma morada e um símbolo. Mas, entre as bem-vindas subversões, há o obscurantismo cíclico.
Ainda dentro da ideia do cinema como espaço de reprodução, mas também de encontro, conciliação e confronto, é curioso (e efetivo) que Fernando acesse a própria ancestralidade (especificamente o começo da trajetória do avô) por meio do filme que está realizando após surrupiar os moçambicanos. Nesse sentido, o osso carregado como amuleto assume função análoga ao Rosebud, sendo também um objeto que desencadeia revelações à sua medida. Todavia, ao contrário do carrinho que dava à posteridade a trajetória de Charles Foster Kane em Cidadão Kane (1942), o pedaço humano confere ao protagonista, por meio dessas faculdades mágicas absorvidas no filme como dados intrínsecos, a recolocação das devidas peças no lugar para mostrar um painel exploratório. Um Animal Amarelo é poroso, evita prender-se a lógicas cartesianas nesse processo de organização do mundo a partir dos estilhaços de um passado lancinante. Felipe Bragança cria camadas entre o fato consumado e a representação, atribuindo às fontes narrativas um papel indiscutivelmente importante. Tudo é farsa, verdade e inventado nesse filme arrojado que evita interditar o elo entre imaginação e fabulação.
Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020
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