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Sinopse

Aposentado, o detetive John 'Scottie' Ferguson padece de um terrível medo de altura, uma vertigem que o acomete quando distante do solo. Certo dia, ele é incumbido por um ex-colega de seguir sua esposa, Madeleine. Logo, Scottie intui que a mulher pode ter tendências suicidas, exatamente por conta de sua predileção por abismos e alturas.

Crítica

Alfred Hitchcock não é chamado de “mestre do suspense” à toa. Porém, além de causar calafrios e intrigar o público, o cineasta conseguia colocar seus próprios medos, paixões e estudos dentro de seus filmes. Um exemplo disso são as constantes referências ao duplo na sua filmografia. Exemplos não faltam: A Sombra de uma Dúvida (1943), Pacto Sinistro (1951), O Homem Errado (1956), Psicose (1960) e o agora eleito Melhor Filme de Todos os Tempos pela revista Sight and Sound do Festival de Cinema Britânico (BFI), Um Corpo que Cai. O filme foi um dos objetos de estudo do meu trabalho final de pós-graduação, que teve como tema justamente o duplo no cinema, e boa parte desse texto está replicado aqui. Mas afinal, o que é este duplo?

Os chamados duplos foram tema nas primeiras décadas do século XX do estudioso Otto Rank, que imaginava a projeção do seu outro eu como um reflexo do narcisismo, a própria personalidade de um homem que representa sua sobrevivência futura, uma negação da morte, uma segurança contra a destruição do ego. Segundo ele, a origem da observação do homem sobre seu duplo remete à história antiga, com a descoberta da sombra. Através dela o homem viu sua forma pela primeira vez e, logo após, tornou-se a sua alma.

doppelgänger (termo alemão para o duplo) seria uma cópia de nós mesmos, alguém que representa o nosso “outro eu”; pode ser o nosso lado sombrio; ou até mesmo outra pessoa que, ao nosso lado, representa o yin yang, os dois lados da mesma moeda, uma mesma personalidade dividida em duas. No cinema clássico (e aqui clássico se refere a filmes que possuem uma narrativa linear – início, meio e fim – na famosa “jornada do herói”) os duplos geralmente eram colocados como herói e vilões, um complementando o outro.

Posto isso, Um Corpo que Cai nos traz a história de Madeleine (Kim Novak), uma bela mulher que sofre com uma crise de identidade: ela tem visões e um comportamento estranho. Seu marido pede a John Ferguson (James Stewart, um dos favoritos de Hitchcock), um detetive aposentado e que sofre de acrofobia (medo de altura), que investigue as saídas misteriosas da esposa. O marido acredita que Madeleine esteja sendo possuída por sua bisavó Carlotta, que tinha tendências suicidas. John segue Madeleine, apaixona-se pela mulher e tenta ajuda-la.

Porém, o plano não dá certo, e, após uma intensa corrida na escadaria de uma pequena igreja, Madeleine atira-se do alto do prédio, enquanto John fica traumatizado por ter perdido sua amada ao não conseguir subir as escadas por medo de altura. Tempos depois, John caminha pela cidade e encontra uma outra mulher muito parecida com Madeleine. Mas Judy tem uma personalidade bem diferente: vive sozinha; aparentemente, é mais segura de si; e não aceita, inicialmente, a companhia de John. Com o andar da narrativa, revela-se que ela é a mesma mulher e, mal sabe o detetive, na verdade, fazia passar-se pela esposa de seu cliente, e que esta foi quem morreu caindo do alto da igreja. Enquanto esta revelação não é feita ao detetive, vemos a trajetória deste em querer transformar Judy em Madeleine, tanto nos seus trejeitos, quanto em suas roupas, suas jóias, seu cabelo.

Neste filme, o duplo é representado pela mesma atriz, Kim Novak, e ambos são a mesma pessoa. Enquanto Madeleine é loira, veste sempre tons neutros, acinzentados e esbranquiçados, é insegura e apresenta as citadas tendências suicidas, Judy, seu alter ego, é morena, sempre usa cores mais vivas (destaque para o verde) e é, aparentemente, mais segura. As duas têm em comum a paixão submissa por John.

Enquanto a primeira representa o “lado mau” por ser outra pessoa e cometer um crime, Judy é seu “lado bom” por ser a persona verdadeira, apesar de também esconder o crime, porém em Judy o arrependimento está evidente. Mas as definições acerca do duplo em Um Corpo Que Cai vão além da óbvia relação bem/mal.

Neste filme, podemos notar um paralelo com o clássico conto de Hoffmann O Homem de Areia. Na primeira parte do conto, o jovem Natanael escreve uma carta para seu amigo, Lotário, irmão de sua noiva Clara, contando sobre uma experiência que acabou de ter: está em seu quarto de estudante e assusta-se com um homem que bate à porta e remete o jovem a uma lembrança da infância. Na época, as crianças eram postas na cama mais cedo, pois, segundo seus pais, o Homem da Areia ia chegar, um homem perverso que chegava quando as crianças não iam para a cama, jogava areia nos olhos delas, fazendo com que saltassem fora, colocava os mesmos num saco e os levava para alimentar seus filhos na lua. Nas memórias de Natanael, o advogado Copellius, com quem seu pai fazia experimentos químicos, seria o Homem de Areia que matou seu pai. Inclusive Natanael teria presenciado a cena em que o assassinato ocorreu.

Muitos anos depois, Natanael está em férias com sua noiva e, ao encontrar o vendedor Copolla, imagina que este é Copellius. Atormentado, ele decide comprar um binóculo de Copolla, para que este o deixe em paz. Com o binóculo ele vê Olímpia, por quem se apaixona. Natanael enlouquece ao descobrir que Olímpia é uma boneca, construída por Copolla/Copellius e seu professor de física. É internado num manicômio e parece recuperado, quando tenta jogar a noiva Clara do alto de uma torre, após olhar outra vez pelo binóculo. Ele joga-se da torre logo em seguida.

As personagens interpretadas por Kim Novak e o detetive John de Um Corpo que Cai poderiam ser descritas como repaginações de Natanael, Clara e Olímpia, de O Homem de Areia. John, assim como Natanael, tem um trauma do passado que o aterroriza no presente: o detetive viu seu parceiro de polícia cair do alto de um prédio, origem de sua acrofobia; após, o mesmo acontece com sua amada – duas vezes. Já Natanael teria visto o Homem de Areia causar a morte de seu pai na infância e, anos mais tarde, causar a morte de sua grande paixão, Olímpia, mesmo que ela fosse uma boneca. Ambos não apenas são apaixonados pelas respectivas mulheres como são obcecados por seus traumas, levados ao limite da loucura.

Madeleine seria como Olímpia, uma mulher sempre contemplativa e que não existe na verdade. Enquanto Madeleine é apenas um “personagem” interpretado por Judy para chamar a atenção de John, Olímpia é uma boneca construída justamente para atrair a atenção de Natanael. Ambas morrem após terem seus objetivos atingidos.

Judy é Clara – com algumas ressalvas: uma mulher objetiva, de carne e osso, que tenta atrair (com infortúnio) seu amado à realidade e esquecer seu passado e seus traumas. Judy tenta a todo tempo convencer o detetive de que não é Madeleine, ao mesmo tempo em que deixa-se levar por John a transformá-la na outra mulher. Clara quer que Natanael livre-se da ilusão do Homem de Areia e seguir uma vida feliz, mas com o tempo é rechaçada por não ser, ou tentar ser, Olímpia, a mulher por quem é apaixonado. A diferença é que Judy morre no final da trama caindo de uma razoável altura, que poderia ser a mesma altura do penhasco onde Natanael e Clara encontram-se ao fim de O Homem de Areia. Mas Natanael tenta empurrá-la para a morte, não consegue, e ele mesmo acaba suicidando-se. A vertigem que dá cabo da realidade.

No filme a jornada do herói é quebrada por não termos uma resolução feliz. A trama é contada de forma linear, mas o próprio John não é o que podemos chamar de “herói”. Afinal, ele tenta reconstruir sua amada em outra pessoa, numa espécie de obsessão que beira à necrofilia (desejo sexual por cadáveres). A própria Madeleine, ou melhor, Judy, não pode ser descrita como uma vilã. Ela cometeu um erro no passado que culminou com a morte de uma mulher, mas percebemos por suas características que ela não é uma vilã. Judy arrepende-se do que fez e tenta apagar este erro revivendo a história com John. Uma personagem mais próxima da realidade e longe do estereótipo do vilão sem consciência. Talvez por essas e outras qualidades do filme, um longa lento, mas profundo, que é nada menos que uma história de amor do além disfarçada de suspense metódico, este seja o atual eleito “melhor de todos os tempos”. E revendo (mais uma vez) fica difícil de discordar.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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