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Crítica


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Sinopse

Dados alarmantes apontam o Brasil como o segundo país no ranking mundial dos casos de exploração sexual infantil. Especialistas, celebridades, influenciadores e outras testemunhas falam dessas circunstâncias aterradoras.

Crítica

“Se você foi vítima, denuncie”, avisa o letreiro inicial, ao lado de um número de telefone e uma explicação de que “este filme é sobre violência sexual contra crianças e adolescentes”. “Compartilhe esse filme com alguém, denuncie”, reforçam os letreiros finais. Um Crime Entre Nós (2020) é muito transparente enquanto denúncia social: ele foi concebido para dar voz a especialistas e vítimas de abusos e exploração. A experiência do espectador dependerá de seu ponto de vista sobre a função do cinema. Para quem acredita que a mensagem, o aprendizado e as boas intenções são prioritárias – ou seja, que a arte deveria possuir um caráter utilitário -, o resultado cumpre seus objetivos com louvor. Para quem acredita que o cinema deve constituir uma experiência estética, fornecendo elementos de reflexão ao invés de alertas prontos, o resultado será semelhante a uma reportagem televisiva. Afinal, a discussão proposta pelo documentário poderia se passar num canal de televisão, no rádio, num podcast, no teatro, ou ainda numa roda de debates ou num panfleto. O cinema torna-se um suporte adicional para veicular um conteúdo importante. Sua linguagem própria e específica, neste caso, interessa pouco.

A direção está repleta de ideias, algumas melhores do que outras. Por um lado, são entrevistados uma dezena de especialistas bastante eloquentes, dando preferência às mulheres, o que inclui sociólogas, psicólogas, procuradoras do Estado e diretoras de ONGs especializadas no assunto. Estas mulheres possuem um discurso acessível – algo fundamental ao projeto de pretensões pedagógicas -, sem precisarem simplificar explicações. Por outro lado, é incompreensível que um médico renomado na área da saúde como Dráuzio Varella tenha menos tempo de tela e oportunidade de se expressar do que Luciano Huck, apresentador de televisão sem evidente conexão com o tema, além de ser um político de assumidas pretensões eleitorais. A partir do momento em que se permite enxergar o provável candidato à eleição presidencial enquanto homem gentil e preocupado com as minorias, oferece-se palanque ao indivíduo que pode tirar benefício de tal exposição – especialmente por não haver presença de qualquer outro político em cena para equilibrar a representação. Aliás, a política partidária está convenientemente ausente do discurso: a diretora Adriana Yañez evita falar não apenas nas medidas do atual governo, como nos possíveis avanços e retrocessos dos governos anteriores.

Permanece-se na constatação mais ou menos atemporal do problema: existe uma violência intensa contra crianças e adolescentes no Brasil, e é preciso fazer algo a respeito. Não se conhece as datas de todos os dados elencados nos letreiros, e não se sabe de que maneira o país tem evoluído no tratamento do tema. Enquanto Um Crime Entre Nós efetua um belo trabalho ao discutir a masculinidade tóxica e a desmoralização das vítimas, ele jamais interroga o papel da religião, e do cristianismo em especial, na propagação destas ideias. É muito difícil discutir a submissão da mulher e a agressividade embutida na criação dos meninos sem recorrer à herança do pensamento cristão, mas o filme faz o possível para escapar deste caminho espinhoso. Na provável intenção de atingir um número amplo de espectadores, o documentário evita ferir as direitas e os conservadorismos. Pelo menos, ao invés de se ater à escuta passiva dos especialistas, o projeto toma a interessante iniciativa de entrevistar anônimos e depois confrontá-los à leitura de casos de abuso sexual. O recurso poderia se desenvolver muito, estrutural e conceitualmente, dentro de um filme tão sucinto. Mesmo assim, comprova a interessante iniciativa da direção em propor dinâmicas sociais e se abrir à escuta das diferenças – muitos depoimentos de homens e mulheres carregam a ideia de que meninas usando vestidos curtos ou decotes estão “provocando” os homens, sendo responsáveis pela violência que sofrem.

Esteticamente, o resultado também traz propostas boas ao lado de outras mais frágeis. Os depoimentos demonstram captação e edição de som claríssimas, muito mais refinadas que a média dos documentários informativos. A direção de fotografia se preocupa em captar belas imagens de crianças inseridas no espaço urbano, ainda que algumas entrevistas possuam as cores lavadas, e certas composições – os saltos em câmera lenta contra o céu, as cirandas na escola – recorram à representação mais desgastada da inocência. Por mais que os letreiros tornem o ritmo mais dinâmico ao mudarem de cor e tamanho das letras, eles se tornam ainda mais óbvios ao destacarem palavras-chave nas curtas falas dos entrevistados. A colagem inicial com “trechos dos melhores momentos”, ou seja, frases fortes que serão repetidas mais tarde, corresponde à síndrome das redes sociais, onde é preciso reter a atenção do espectador desde os primeiros minutos antes que ele clique em outro vídeo. Por fim, a animação sobre os abusos infantis apresenta um belíssimo trabalho de traços e movimentos, embora a transformação de abusadores literalmente em monstros seja questionável, por dificultar a identificação dos agressores com pessoas comuns da família de qualquer um.

Ao final, o projeto não para de alternar propostas e linguagens. A decisão de trazer o debate para um ponto de vista adulto, repleto de estatísticas e cientistas sociais, se esbarra na canção “Se Essa Rua Fosse Minha” em interpretação particularmente infantil, e no receio de tocar nas feridas concretas da política governamental. A proposta de confrontar pessoas comuns aos preconceitos sociais é limitada pela brevidade de recurso dentro do projeto. Acima de tudo, a vontade de propor uma discussão sobre um tema tão importante é freada pelo fato que Um Crime Entre Nós não nos convida a refletir – ele oferece a reflexão pronta, dizendo o que ocorre, por que ocorre, quais são os dados, e o que devemos concluir a respeito. Esta é menos uma discussão do que uma palestra, menos um estímulo visual do que uma aula introdutória em direitos da criança e do adolescente. Projetos como este encarregam-se de uma missão nobre, porém incomodam por duvidar da capacidade do espectador em refletir por si próprio, em ser perturbado, contradito, surpreso. O cinema infantiliza a comunicação quando diz ao espectador o que pensar, além de colocá-lo em posição de inferioridade, por supor que seria incapaz de compreender a situação por si próprio. Aos convertidos, o projeto terá trazido uma constatação tão pertinente quanto evidente. Resta saber se chegará também às mentalidades contrárias, aos religiosos, aos conservadores e aos machistas, a quem se busca tão corajosa e quixotescamente convencer.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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