Um Dia Antes de Todos os Outros
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Fernanda Bond, Valentina Homem
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Um Dia Antes de Todos os Outros
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2024
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Brasil
Crítica
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Sinopse
Em Um Dia Antes de Todos os Outros, enquanto a jovem Sofia improvisa rimas com suas amizades na comunidade em que vive, sua mãe, Marli, organiza a desocupação do apartamento de classe média alta em que trabalhou por boa parte da vida como cuidadora. Velhos sonhos e novos planos surgem no horizonte desse último dia de trabalho. Exibido no 13º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba.
Crítica
É irresistível traçar paralelos entre Um Dia Antes de Todos os Outros e Que Horas Ela Volta? (2015), especialmente quanto ao discurso político que permeia a relação entre mãe e filha em ambos. Assim como no premiado longa-metragem de Anna Muylaert, temos a trabalhadora um tanto conformada com a sua vida de servidão e a filha que, em certo momento da trama, vai colocar em crise essa situação por meio de uma indignação própria de sua geração. No filme de Fernanda Bond e Valentina Homem, Marli (Clarissa Pinheiro) é a empregada colocada naquele lugar “como se fosse da casa”, deixada sozinha para cuidar da patroa nublada pela doença que gera um estado semi-vegetativo. Num dia qualquer, depois de regar as plantas do apartamento cuja vista revela ao longe o Pão de Açúcar na cidade do Rio de Janeiro, Marli recebe o telefonema do filho da patroa (seu patrão, também). O sujeito avisa que o imóvel foi vendido e a mãe será imediatamente removida a um asilo na serra fluminense. Esse anúncio não pega a protagonista de surpresa, pelo que percebemos nos diálogos posteriores com a amiga, nos quais Marli fala dos planos de voltar à sua terra natal. Porém, nesses últimos momentos residindo num dos bairros mais nobres da Cidade Maravilhosa, Marli vai entrar em conflito com a filha Sofia (Marianna Bittencourt), adolescente moradora da favela da Maré que não quer se mudar do Rio.
Os paralelos entre Um Dia Antes de Todos os Outros e Que Horas Ela Volta? são vários. As mães nordestinas conformadas com a servidão (lógica herdeira da escravidão) que terão os olhos abertos pelas filhas da geração desobediente; a branquitude classe-média como arquitetura dominante ultrapassada; a divergência entre mãe e filha quanto ao futuro, etc. No entanto, diferentemente de Anna Muylaert, Fernanda Bond e Valentina Homem não tratam os conflitos como oportunidades para colocar enunciados na boca das personagens e chegar a conclusões. Por exemplo, Sofia é menos determinada e madura do que a personagem de Camila Márdila em Que Horas Ela Volta?. Marli também é fundamentalmente diferente da figura interpretada por Regina Casé na produção de Muylaert, ainda que dela repita a submissão aos patrões por quem sente carinho – sem perceber que, no caso, a afeição é uma forma de a manter dócil. Encerradas as comparações irresistíveis, é preciso pensar na linguagem por meio da qual a dupla de diretoras desenvolve esse conto com algumas camadas se interligando. Às vezes as abordagens são feitas de maneira esquemática, como quando a adolescente reivindica a sua negritude diante da mãe surpresa ou na visita inesperada da compradora do imóvel que canta gentilmente na língua-mãe para confortar o corpo inerte da mulher. As intenções são ótimas, mas há ali uma artificialidade.
Numa lógica intimista, com poucas personagens e, basicamente, no interior do apartamento que precisa ser desmontado, Um Dia Antes de Todos os Outros fala de sororidade, classe e raça. Iara (Elvira Helena), a ex-patroa antigamente acostumada a festas extravagantes, mas que agora está confinada num corpo inadequado aos seus anseios de viver, não é retratada como uma vilã inescrupulosa por ter se aproveitado de Marli dentro dos parâmetros de um contrato capitalista desigual. Fernanda Bond e Valentina Homem a retratam de maneira empática, buscando sempre sensibilizar o espectador diante do seu semblante cravejado de melancolia e impotência. O posto de grande escroto fica com o filho dessa mulher, não é toa uma ausência. Ele é mais um daqueles homens escondidos atrás dos muros do excesso de trabalho para justificar a precarização da funcionária e o tratamento da mãe como bagagem indesejada que o dinheiro pode fazer desparecer com quantidades administráveis de culpa. O mais importante acontece no apartamento a ser esvaziado, das conversas reveladoras do contexto aos embates entre a inocente Marli e indignada Sofia. Fernanda Bond e Valentina Homem poderiam ter trabalhado melhor o mergulho da jovem no universo da arte para sustentar a sua emancipação pessoal. Afinal de contas, o filme abre com a garota na companhia de amigos que reforçam o seu orgulho.
O roteiro de Fernanda Bond, Valentina Homem e Jô Bilac não permite que os temas e subtextos sejam expandidos, sobretudo os formadores das camadas políticas um tanto óbvias. Do mesmo modo, a tensão pela dificuldade de Sofia anunciar a independência é muito mais associada ao resquício da infantilidade (e ao temor à mãe) do que àquilo que o conflito também representa do ponto de vista simbólico. Sim, pois Sofia é a mentalidade nova, o desejo de emancipação por meio de arte, liberdade e indignação. É a fidelidade às raízes criadas numa comunidade que a representa profundamente por conta de seus preceitos culturais. Enquanto isso, Marli é a mulher ansiando voltar para uma terra da qual provavelmente reconhecerá pouco, alguém que se mantém fiel ao seu posto de trabalho mesmo que isso signifique continuar se adequando obedientemente à servidão solicitada como pré-requisito por uma classe média empregadora. As comparações com Que Horas Ela Volta? são óbvias, mas enquanto Anna Muylaert trabalha num terreno mais firme, no qual os mocinhos e vilões, os certos e errados estão bem definidos, Fernanda Bond e Valentina Homem constroem mais sobre a areia movediça, num solo volátil em que se assentam fragilmente afetos, reivindicações, discordâncias e gestos afirmativos diluídos no cotidiano. Ainda que certos desdobramentos e determinadas atitudes sejam convenientes demais ao discurso político que precede todas as ações no filme, o resultado possui qualidades.
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