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Crítica


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Sinopse

Sílvia é uma jovem pesquisadora de mercado que enfrenta o desemprego e está à espera do resultado de um concurso público. Ela encontra Jerusa, senhora de 77 anos, uma das próceres do bairro paulistano do Bexiga. Mediunidade e lembranças permitem o trânsito por tempos e realidades comuns às suas ancestralidades.

Crítica

Era preciso que o cinema nacional apresentasse, enfim, um projeto como esse, cuja equipe técnica e criativa é quase integralmente formada por mulheres negras. Historicamente, acostumou-se a equipes compostas apenas por homens brancos, sem que isso fosse percebido pelas normas sociais como uma forma de sub-representação ou, melhor dizendo, uma anomalia. Homens brancos tiveram várias décadas e múltiplas oportunidades para errarem, testarem diferentes estilos, se aprimorarem, com apoio do governo, patrocínios e afins. Das mulheres, dos cineastas negros e das mulheres negras em especial, cobra-se “meritocracia”, que todos os seus projetos sejam excelentes desde as primeiras oportunidades. Devido a desequilíbrios estruturais como estes, aplaude-se a existência de Um Dia com Jerusa, filme em que a maioria das mulheres envolvidas desempenhou suas funções pela primeira vez. Abre-se, ainda que timidamente, as portas para a renovação de vozes e pontos de vista no audiovisual.

Isso não significa que o resultado se posicione à prova de um olhar crítico, ou não mereça análise de sua realização. Este é um projeto iniciante, cheio de garra, mas também carente de refinamento. A apresentação das personagens, em particular, provoca certo incômodo. Frases de efeito sobre o empoderamento negro são disparadas de maneira artificial, e a batalha da jovem Sílvia (Débora Marçal) pela aprovação num concurso é explicitada de modo didático, através de uma lousa dentro de seu quarto. A apresentação destas duas mulheres soa ríspida, uma vez que o interesse da trama se encontra no encontro entre ambas, ao invés da construção particular de cada uma delas. O drama pretende efetuar uma passagem de bastão entre gerações: através de uma reunião do acaso, a mulher negra e idosa encoraja a jovem a seguir em frente. Trata-se de uma intenção modesta – a trama inteira se passa ao longo de um único dia, dentro da casa de Jerusa – ainda que a produção esteja ciente de seu porte e suas ambições, sem se arriscar em invencionices estéticas ou narrativas que não possa desenvolver.

Academicismos à parte, existem escolhas dignas de nota dentro deste projeto. A diretora Viviane Ferreira demonstra empatia sincera pelas duas mulheres e por suas trajetórias específicas: uma senhora abandonada pela família e uma jovem homossexual lutando para sobreviver em meio adverso. A casa, espaço fechado onde aprendem a se conhecer, se transforma numa bolha cortada do resto do mundo, um espaço de proteção. O filme oferece às duas um parêntese da vida cotidiana, ou seja, um local onde a idosa possa enfim ter companhia, e a jovem possa finalmente encontrar um modelo à altura de suas aspirações. Por isso, é importante que a câmera filme a nudez da personagem sem qualquer fetichização, e que tenha a coragem de fechar o enquadramento numa calcinha coberta de sangue menstrual. O pressuposto da mulher reservada à vida doméstica – Sílvia bate de porta em porta fazendo pesquisa com mulheres sobre seu sabão de pó preferido – é contestada pela minúscula revolução interna em cada uma delas, dividida apenas com o espectador, em chave intimista.

Além disso, Um Dia para Jerusa transforma Léa Garcia, grande atriz brasileira, numa diretora em potencial: sua personagem, originária de uma família de fotógrafos, caminha pelas ruas com a câmera em punho, pronta a filmar abusos policiais e a sabedoria que vem da boca dos loucos. Garcia se converte simbolicamente em alter-ego de Viviane Ferreira enquanto assume o protagonismo do discurso: dali em diante, é o ponto de vista dela que veremos. O filme, portanto, não é construído sobre Jerusa, tendo-a como tema, e sim com ela. É certo que as atrizes são dirigidas de modo simples demais, e teriam muito mais a oferecer – Léa Garcia às vezes se prende na fala excessivamente doce, a boa Débora Marçal poderia buscar outros recursos para o “transe” recorrente da personagem -, mas ainda representam um cinema de representatividade em sua essência: a atriz veterana não encarna apenas Jerusa, mas todas as mulheres negras de gerações passadas, mais diretamente ligadas à escravidão, enquanto Marçal interpreta todas as jovens negras desta geração, sofrendo com a falta de oportunidades e o racismo.

Ao final da sessão, a plateia da Mostra de Tiradentes aplaudiu efusivamente o filme. Havia algo muito novo sendo retratado ali, o que não implicava numa estética radical nem numa politização partidária. Percebia-se uma dinâmica de afetos sincera, mulheres negras falando por si mesmas, sem serem definidas pelos homens que amaram nem pelos espaços que os brancos lhes “permitiram ocupar”. Elas não são escravas, empregadas domésticas ou amigas da protagonista. Elas não são heroínas nem vítimas, ou seja, nem idealizadas, nem martirizadas. Diante desta naturalidade e da aparente banalidade do projeto se encontra um valor importante, fruto do trabalho conjunto de uma equipe repleta de potencial. Nos próximos projetos, terão a oportunidade de assentar as conquistas e imprimir maior ambição. Enquanto isso, tornam visíveis rostos e corpos que não costumam ocupar a tela do cinema. Assim como Jerusa empodera Sílvia, Léa Garcia abre o caminho a Viviane Ferreira, a Débora Marçal, a Bruna Anjos, a Lílis Soares, a Issis Valenzuela, a Jamille Coelho e demais membros da equipe para continuarem criando. Para uma primeira experiência, desempenham um resultado digno de nota.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
6
Chico Fireman
5
MÉDIA
5.5

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