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Sinopse

Em uma remota cidade da Islândia, um policial começa a suspeitar que um morador já tenha tido um caso com a sua recém-falecida esposa. Gradualmente, a sua obsessão por descobrir a verdade vai se tornando um problema cada vez mais grave e possivelmente fatal para todos os envolvidos na situação.

Crítica

Neste drama islandês, todas as ações se repetem ou se espelham ao longo da narrativa. O diretor Hlynur Palmason insere seu protagonista num curioso percurso fantasmático: para efetuar o luto da esposa morta num acidente de carro, ele precisará revisitar o passado, concreta e simbolicamente. Assim, o belo plano-sequência do acidente, na cena inicial, espelhará outro plano-sequência, igualmente rigoroso, rumo à conclusão. O sangue de peixe, no início, reflete outra cena sangrenta no final. A invasão da casa por um cavalo, no primeiro terço, se comunica diretamente com outra invasão, no desfecho. A terapia com um profissional espelha outra “terapia” improvisada entre dois homens, um pouco mais tarde. Um Dia Muito Claro torna-se um filme cíclico, formado por sucessivos acertos de conta tanto dos personagens quanto das imagens com elas mesmas.

Talvez seja injusto oferecer uma sinopse completa, até porque a narrativa se recusa a revelar prontamente o conflito principal. Ingimundur (Ingvar Sigurdsson) está sempre dois passos à frente do espectador: quando ele planeja uma vingança, não sabemos ao certo por qual motivo, quando encara os filhos adultos com tristeza durante uma festa, ainda desconhecemos o motivo de tamanho pesar. As informações são entregues aos poucos, visto que parte considerável do suspense nasce desta assimetria entre personagens e público. O roteiro gosta de lançar algumas pistas falsas (as imagens impressas na delegacia) ou sobrecarregar símbolos que podem, ou não, vir a desempenhar um papel importante no desfecho (como a pedra e a neblina). Até que todas as pontas sejam atadas, Palmason decide reter a atenção do espectador através da asfixiante atmosfera de tensão, ao invés da identificação com a trajetória de justiça de Ingimundur.

Outro elemento de adesão proporcionado ao público se encontra na própria construção de imagens. Cada cena é cuidadosamente enquadrada e iluminada, explorando não apenas os espaços em scope (a casa em construção, a paisagem ao redor) mas a solidão dos personagens e a sucessão de intervenções sonoras fora do enquadramento, solicitando mais uma vez nossa atenção e poder de dedução. Um Dia Muito Claro oferece uma sequência vertiginosa de tours de force, cada segmento sendo ainda mais impressionante do que o anterior. Ora os planos-sequência soam engenhosos (a cena da briga), ora as passagens do tempo são representadas por recursos simples e intrigantes como as inúmeras repetições da fachada da casa através das estações. Em outros instantes, o percurso dos carros na estrada (também espelhado em duas cenas irmãs) é filmado através de monitores de vigilância. Palmason encontra uma solução visualmente deslumbrante, e narrativamente pertinente, a cada passo do filme.

Tamanha desenvoltura poderia se resumir a mero exibicionismo do diretor, caso não servisse de fato à trama. Felizmente, o suspense nunca perde de vista a construção psicológica dos personagens, e seu humanismo, retratado sobretudo através da bela relação entre o avô e sua neta. Ambos precisam se confrontar à morte: ele, devido à morte recente da esposa, e ela, pelo contato com contos de terror e com animais mortos na pesca. Não por acaso, as dores de ambos se unem numa cena potente, um encontro inesperado de vozes e de dores. Sigurdsson é um ator excelente, navegando entre a brutalidade com os colegas e o carinho com a garotinha; entre a postura calada enquanto sinal de força ou de fragilidade. A câmera sempre busca seu corpo, seus olhos selvagens e literalmente o seu sangue. Seria tentador sobrecarregar o aspecto melodramático desta jornada, porém o diretor mantém o filme numa elegância sugestiva, confiante na capacidade do espectador em compreender sozinho suas sugestões.

Por fim, o projeto escapa aos acertos de contas movidos unicamente pelo senso de honra do macho traído. Os brasileiros Para Minha Amada Morta (2015) e Morto Não Fala (2019) não escapavam à tentação de perdoar homens imorais devido ao fato de terem sido traídos pelas esposas amadas. Ora, o projeto islandês vai muito mais longe ao fazer da questão da infidelidade um mero ponto de partida para que Ingimundur se reconcilie consigo mesmo, com a família, com a neta, com a possibilidade de futuro. Embora a virilidade deste policial desempenhe um papel considerável na construção do personagem, ela não serve como salvação moral ao mesmo. Um Dia Muito Claro privilegia uma complexa representação estética e narrativa do luto ao longo de duas horas. Ao contrário da linearidade implacável das histórias de vingança, Palmason prefere a beleza dos caminhos vertiginosos.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
10
Chico Fireman
6
MÉDIA
8

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