Crítica


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Sinopse

Ao voltar para a Tunísia após morar durante muitos anos na França, a psicanalista Selma precisa lidar com um grande número de pacientes novos. Ela se depara com um país moderno, tomado de contrastes e conflitos culturais latentes.

Crítica

Para a diretora Manele Labidi, a França e a Tunísia constituem mundos opostos. O primeiro país seria sinônimo de pessoas refinadas, intelectuais, pontuais e amantes da liberdade sexual. Já o segundo seria marcado pela repressão dos costumes, driblada pelo “jeitinho”: homens muçulmanos escondem álcool na lata de Coca-Cola, mulheres escondem os cabelos multicoloridos por baixo do véu, o respeitado padeiro esconde o desejo de se vestir de mulher. Em se tratando de uma comédia, de traços exagerados, a cineasta investe no jogo de pretensas simetrias: a Europa contra o Magrebe, o pensamento cristão contra o árabe, mulheres contra homens, a cultura da fé contra a cultura da razão. A psicanalista Selma (Golshifteh Farahani) constitui o estopim necessário para que estes polos, pacificamente separados, se choquem. A mulher tunisiana de nascimento, porém habitante de Paris há décadas, retorna a Túnis, trazendo consigo as roupas modernas, os braços tatuados e um quadro de Sigmund Freud. Ela pretende iniciar seu consultório na terra dos familiares e, como se poderia esperar, enfrenta todo o tipo de resistência dos moradores locais.

A prática da psicanálise nas sociedades árabes seria um tema de grande interesse, que Um Divã na Tunísia (2019) não pretende esclarecer. Para este roteiro singelo, bastam as consequências caricaturais deste embate: os religiosos escandalizados quando uma mulher solteira recebe homens para falar sobre sexo, despertando comparações entre terapia e prostituição. O filme abraça generosamente o humor físico, onde pacientes e habitantes se tornam motivo de chacota: há o homem desesperado para ter atendimentos todos os dias, o outro incapaz de encontrar uma posição confortável no divã, o filho ressentido de deixar a mãe sozinha no consultório. A estrutura se assemelha à comédia de esquetes, incluindo sequências tipicamente televisivas, como o acidente de carro sugerido pela câmera tremendo. Labidi evita qualquer forma de sofisticação: ela pretende ser popular, acessível, sem mergulhar nos problemas de nenhum paciente, e muito menos naqueles de Selma. Afinal, por que a mulher bem-sucedida, e sem conexões afetivas com a Tunísia, teria retornado à sua cidade?

A narrativa apresenta dificuldade em responder a estas questões fundamentais. Golshifteh Farahani é uma atriz excelente, capaz de encarar com seriedade as cenas mais improváveis. No entanto, a personagem resta opaca: a brusca motivação para a mudança de país, apresentada no terço final, jamais convence plenamente, e a relação ambígua da psicanalista com Sigmund Freud mereceria contextualização. Pela incapacidade de explicar os laços familiares ou a relação da heroína com a França, o reencontro com o avô se torna anticlimático, e não sabemos do que esta mulher abriu mão para retornar à Tunísia. Os demais personagens – o policial interpretado por Majd Mastoura, o imam encarnado por Jamel Sassi, a prima vivida por Aïsha Ben Maled – se limitam a arquétipos desprovidos de uma personalidade própria. A diretora e roteirista está preocupada demais com as gags humorísticas (o carro quebrado duas vezes, a compulsão alimentar da funcionária do Ministério) para desenvolver qualquer subtrama. Labidi desenha um pano de fundo importante, porém escapa pela tangente assim que a seriedade se apresenta – vide as representações cômicas do abuso sexual e da transexualidade, dois temas que mereceriam cuidado muito maior.

O melhor aspecto do filme se encontra na ausência de idealização: enquanto os tunisianos são descritos como malandros e hipócritas, a heroína vinda de Paris manifesta um comportamento arrogante e superior em relação aos conterrâneos. Esta relação se sobressai nos embates entre a psicanalista e o policial. Apesar da tendência a sugerir uma história de amor entre ambos (com o auxílio de câmeras lentas e música romântica), estes momentos servem para confrontar os personagens às suas respectivas falhas de comportamento. O choque entre Selma e Naim resulta na verdadeira sessão de terapia, visto que o divã resta um espaço de trapalhadas e disseminação de identidade (literalmente, quando a prima se esconde atrás do móvel). Pelo menos, Um Divã na Tunísia sustenta a tese de que nenhum modo de vida seria superior ao outro, e que o encontro de culturas provocaria o meio-termo ideal entre os tunisianos bagunceiros e os parisienses psicorrígidos. A análise, prática que extrai do conflito uma forma de autoconhecimento, é ironicamente substituída pela crença no otimismo (o deus ex machina dos documentos) e na capacidade natural de conciliação entre diferenças.

Enquanto conceito de mise en scène, o projeto possui poucas ideias para adequar a arte da imagem à arte da fala, ou a exterioridade dos atos à interioridade dos sentimentos. A cineasta se contenta com planos de conjuntos e close-ups acadêmicos, além de estranhos zooms no rosto de dois pacientes em fase de descobertas. Pela estratégia de popularizar a psicanálise ao grande público, talvez o projeto possua o mérito de desconstruir preconceitos – Selma demonstra senso ético e de conduta exemplares. Entretanto, a trama jamais se preocupa com a melhoria de seus personagens. A terapia em meio conservador serve de catalisador de conflitos, a exemplo de filmes onde adultos se comportam como crianças, ou homens se comportam “como mulheres”. Labidi ri diante do mundo fora do seu lugar preestabelecido, e embora pregue que todos deem as mãos no final, mantém o escárnio diante da ideia de árabes se abrindo sobre seus desejos e angústias. O discurso poderia ser considerado depreciativo, ou no mínimo paternalista. Obviamente, estes elementos são embalados em música divertida, cores quentes, ritmo ágil e piadas rápidas. A psicanálise consiste num estudo de causas e consequências profundas, porém o filme destinado a representá-la privilegia a inconsequência.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Francisco Carbone
6
MÉDIA
5.5

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