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Sinopse

Nova Iorque, década de 1850. Abigail atravessa uma depressão profunda após perder a filha pequena. Sua rotina se transforma quando conhece a nova moradora da fazenda vizinha, Tallie. Juntas, estas duas mulheres se identificam devido às pressões exercidas pelos maridos. Aos poucos, surge entre elas uma história de amor inaceitável para os padrões da época.

Crítica

Um Fascinante Novo Mundo (2020) oferece a experiência clássica de uma obra histórica adaptada de um romance sobre amores impossíveis. A trama é movida pelo diário de Abigail (Katherine Waterston), protagonista e narradora em off. Ela descreve tudo de que o espectador precisa saber: as datas, lugares, o nome e a função de cada personagem, os objetivos para o futuro, as dores e os sentimentos. A jovem esposa se expressa através de frases como: “Com pouco orgulho, e menos esperança, começamos o ano novo”, sinal de seu estado de espírito perene. Letreiros surgem na tela, com a tipografia de cartas e pergaminhos, na intenção de precisar datas. Os personagens fascinados por poesia conversam em vocabulário sofisticadíssimo, mesmo para a década de 1850 – sobretudo em se tratando de camponeses pobres. Existe certa pompa nos gestos, rigidez nos corpos e formalidade excessiva na fala. Embora lidem com porcos e galinhas, estas mulheres possuem os vestidos limpos e devidamente apertados em torno da cintura. Elas ocupam casas singelas, silenciosas, dentro das quais efetuam pausas sonhadoras apoiando-se contra os móveis. As cenas transbordam de etiqueta, decoro, rituais e costumes. Os personagens parecem não respirar: eles estão constantemente interpretando a figura social exigida pelo senso comum.

Diversos filmes ditos “de época” encontram alternativas para subverter a visão protocolar dos códigos de conduta. No entanto, a diretora Mona Fastvold os abraça, seja pela elegância artificial dos diálogos (“Poderia me conceder o prazer de cear conosco esta noite?”), seja para explicitar o calvário das mulheres no século XIX. O filme é impregnado de melancolia, além de indignação, sem que os personagens saibam ao certo contra o quê, ou quem. Abigail está triste após a morte da filha pequena, passando os dias isolada numa fazenda fria; o marido Dyer (Casey Affleck) suspira pela distância da esposa durante o luto, e pela recusa dela em fazer outra criança; a vizinha Tallie (Vanessa Kirby) lamenta o fato de nunca engravidar, nem corresponder às demandas do marido Finney (Christopher Abbott), um sujeito conservador que lhe recita versos bíblicos a respeito da submissão das esposas. O quarteto ocupa a quase integralidade das cenas, suspirando pelos cantos, lastimando a má sorte, a vida ingrata, a solidão, o clima austero, os animais mortos no celeiro. Quando as duas se aproximam e iniciam um relacionamento amoroso, os encontros ainda são marcados por impressionante modéstia. Os maridos, ao notarem a atração mútua entre as esposas, se comunicam em pesares: “Seu sorriso se interrompeu quando me viu. Ele era destinado a outra pessoa?”.

Esta disposição confere ao drama um tom voluntariamente lânguido, arrastado. A cineasta efetua uma escolha curiosa para o elenco, combinando Casey Affleck, ator conhecido pelas interpretações morosas, com Katherine Waterston, atriz capaz de uma delicadeza microscópica quando solicitado. Assim, as cenas do casal principal são ocupadas por murmúrios sem variação de tom, nem intensidade. A raiva do marido e a indignação da esposa se traduzem numa comunicação etérea. Quando os quatro se reúnem, Abbott reforça a expressão apática e a voz baixa, restando a Vanessa Kirby a única composição dotada de vigor. De modo geral, os personagens dialogam de modo tão introspectivo que aparentam preservar o silêncio para não acordarem alguém no cômodo ao lado - as conversas curtas e fragmentadas se assemelham a confissões dos personagens para si mesmos. Em paralelo, a narração cochichada de Waterston mistura delicadeza e desafetação. Os personagens estão tristes, mas choram pouco; estão felizes, mas quase nunca sorriem. Ama-se e odeia-se através de ínfimas contorções do rosto.

Diante destas escolhas de mise en scène, o trabalho de simbologias se torna particularmente importante – afinal, as metáforas se encarregam de transmitir aquilo que as mulheres não querem, ou não podem, verbalizar por si próprias. Ora, neste quesito, Fastvold apresenta um arsenal limitado: Abigail e Tallie comparam-se a passarinhos presos em gaiolas; acariciam as mãos e pulsos sedutoramente; confessam que “meu dia ficou muito melhor graças a você” após o primeiro encontro. A paixão surge à primeira vista devido a uma inequívoca troca de olhares. A cineasta evita ambiguidades na construção do sentimento amoroso: a partir do instante em que se encontram, elas se amam incondicionalmente, restando apenas saber se conseguirão concretizar o relacionamento. Um Fascinante Novo Mundo idealiza o sentimento amoroso, percebido enquanto forma de representação democrática: se os casais heterossexuais tiveram direito a centenas de histórias com juras de amor eterno, porque os casais lésbicos não teriam direito a uma romantização equivalente? Os maridos se transformam em personagens acessórios, a exemplo das esposas de heróis hollywoodianos, contentando-se em dar a réplica às heroínas e aprofundar os conflitos delas. Dentro uma obra de vocação operística, a pureza se encaminha à tragédia – a cineasta norueguesa opta pelo martírio das heroínas.

O projeto se conclui com a aparência de uma produção eficaz, repleta de méritos técnicos e artísticos – as casas são impecavelmente construídas, iluminadas por trabalho rigoroso e discreto de fotografia, e contempladas por uma montagem pesarosa, porém coesa. O filme conta com atores comprometidos, transmitindo respeito pelas personagens, e denunciando as raízes cristãs da opressão à liberdade femininas. Fastvold evita tanto o espetáculo sádico da opressão das minorias (em estilo Them, 2021) quanto o fetiche dos corpos e da nudez (as cenas de sexo se destacam pelo naturalismo). Em contrapartida, resulta numa experiência árida, desprovida de poesia, de respiro, de ousadia na linguagem cinematográfica. A câmera, a luz, os personagens se encontram no local exato que se esperaria deles – para o bem e para o mal. Nenhuma sequência se sobressai às demais em termos de força ou ambição. Ao retratar uma voraz história de amor, a diretora prefere sublinhar a frieza dos protocolos a representar o sentimento profundo de Abigail por Tallie, e vice-versa. Sabemos que as duas se amam, porém o drama nos priva do mergulho na psicologia, no desejo, na indignação. O olhar da direção se distancia, polido e austero, observando somente aquilo que as heroínas exteriorizam. Visto que transparecem pouco de suas emoções, o banquete se revela modesto.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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