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Crítica


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Sinopse

Projeto coletivo que conta com alunos de uma escola suburbana parisiense. Um filme sobre amizade, emancipação e a feitura de filmes como gesto contemporâneo.

Crítica

A iniciativa de entregar a câmera aos personagens, no caso dos documentários, parte de uma boa intenção. Cientes da assimetria de poder na relação entre filmante e filmado, alguns diretores pressupõem que a melhor maneira de equilibrar o ponto de vista consiste em permitir às pessoas filmarem a si mesmas. O dispositivo ocorre sobretudo no caso de diferenças significativas entre culturas (Andrea Tonacci entregando a câmera aos índios de Serras da Desordem, 2006), classes sociais (Agostino Ferrente com os jovens na periferia de Nápoles em Selfie, 2019), ou gerações (Gabriel Mascaro e os pré-adolescentes de Doméstica, 2012). Em Um Filme Dramático (2019), Eric Baudelaire parte igualmente da noção de que os pré-adolescentes franceses do colégio Dora Maar em Seine Saint-Denis (subúrbio pobre de Paris, concentrando populações negras, imigrantes ou descendentes de imigrantes) seriam as pessoas mais apropriadas para falarem de si mesmas. Por isso, fornece a câmera e pede apenas que registrem seus cotidianos. Às vezes, o adulto acompanha os estudantes enquanto gravam seus rostos. Em outros momentos, apenas se apropria dos materiais que trazem de suas casas.

No entanto, o pressuposto de igualdade entre o diretor e os personagens enfrenta algumas barreiras ontológicas. A primeira dela consiste no conhecimento da elaboração de uma imagem: os jovens não sabem como se constrói uma luz, um enquadramento, como trabalhar dramaticamente a profundidade de campo ou o espaço fora de quadro. Caso o cineasta transformasse esse olhar amador em objeto de estudo, o resultado poderia ser fascinante. No entanto, Baudelaire não está disposto a analisar a linguagem das gravações feitas pelos estudantes, priorizando o conteúdo social destes vídeos. Segundo, mesmo que as imagens provenham dos alunos, o diretor orienta as filmagens, sugerindo temas ou dizendo como utilizar o aparelho, o que limita a pretensa liberdade da gravação. Terceiro, e mais importante, o material bruto retorna ao diretor, que possui pleno controle sobre a montagem, decidindo o que acrescentar ou eliminar, quais articulações estabelecer e, em última instância, qual discurso oferecer ao público. Experiências radicais como Pacific (2009), de Marcelo Pedroso (que pede a turistas de um cruzeiro para utilizar as imagens amadoras previamente gravadas por eles durante a viagem) comprovam o controle da narrativa por meio da montagem. Pedroso desenvolveu uma obra profundamente autoral a partir de fragmentos de terceiros que jamais foram concebidos para se tornarem cinema.

Assim, Baudelaire detém as rédeas do projeto ao se apropriar deste material. A montagem se torna um fator determinante para compreender o olhar do adulto à juventude. Neste aspecto, o diretor se mostra indeciso. A duração de praticamente duas horas nunca se justifica, visto que os materiais passam a se repetir na reta final. O painel de personagens é tão amplo que muitos deles ganham apenas uma ou duas cenas, sem a possibilidade de desenvolverem sua visão de mundo diante das câmeras. Os diálogos sugerem que a captação ocorreu ao longo de vários anos, no entanto, nada permite experimentar tamanha passagem do tempo na vida dos garotos e garotas. A decisão de excluir os pais das imagens, e praticamente eliminar as figuras adultas, pode ter como objetivo o empoderamento destes jovens por si mesmos, no entanto, impede que uma parcela significativa de suas vidas seja representada no filme – afinal, eles ainda são dependentes dos familiares. Sobretudo, não há fricção entre as imagens, algo que poderia ser obtido pelo confronto de ideias opostas, pela junção de linguagens díspares e afins. A colagem de trechos obtidos por dezenas de pré-adolescentes se limita a um cotidiano um tanto banal dentro das casas dos jovens. Não se sugere tendências, sintomas, nem se propõe hipóteses a partir do comportamento deste grupo.  Visivelmente, não houve intimidade suficiente para que eles se abrissem de fato diante das câmeras emprestadas.

Mesmo assim, o documentário apresenta trechos interessantes na escola, onde os estudantes revelam seus pontos de vista a respeito da imigração, do racismo, dos ataques terroristas em Paris. É curioso, do ponto de vista sociológico, perceber a xenofobia assimilada pelos grupos desfavorecidos, muitos deles filhos de imigrantes. Ainda que estes temas sejam estimulados pela direção, ao invés de partirem de uma preocupação genuína dos alunos, eles servem como retrato de uma França marcada por contradições, e menos acolhedora do que algumas décadas atrás. Caso o projeto mergulhasse neste processo de formação política durante a infância, poderia explorar melhor a combinação de vigor, ingenuidade e ignorância sobre a vida adulta que se nota em alguns instantes pontuais. No entanto, este não constitui a preocupação central do diretor, mais interessado em perguntar aos garotos o que pensam do cinema. Assim que as conversas adentram algum aspecto mais controverso, Baudelaire pergunta: “Qual é a diferença entre som e ruído?”. Algumas cenas mais tarde, ele se diverte ao ver os meninos discutirem se o projeto no qual estão inseridos constitui um filme ou um documentário. (Para quem ainda tiver dúvidas, documentários são filmes como qualquer ficção – nem mais, nem menos).

Ao final, Um Filme Dramático obtém sucesso mais expressivo enquanto proposta sociopedagógica do que enquanto conceito cinematográfico. Há um valor metalinguístico evidente em descobrir a relação que estes meninos e meninas desprivilegiados possuem com o cinema, e também em testemunhá-los dirigindo uns aos outros, criando ficções e fazendo seus vídeos caseiros, ainda que na forma de brincadeiras despretensiosas. Em paralelo, há propostas poéticas dignas de nota, a exemplo da cena do badminton imaginário – dois garotos fazem os movimentos com as raquetes, porém sem a peteca, enquanto um terceiro efetua os efeitos sonoros ao fundo. Este tipo de trucagem lúdica remete ao cinema dos primeiros tempos, enquanto alude ao potencial da imaginação infantil. No entanto, ao se abrir a tantas vozes, porém sem decidir um tema preciso, o documentário não se aprofunda na vertente política, nem no retrato geracional, e muito menos na complexa psicologia dos jovens entrando na puberdade. Baudelaire observa estes personagens com certa curiosidade, encorajando-os a agirem como adultos, o que transparece certo paternalismo. Embora a câmera esteja na mão dos garotos, a diversão a partir dos jovens, mas não com eles, é tipicamente adulta. O cineasta nunca observa seus personagens de igual para igual.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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