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Sinopse

Uma cidadezinha é habitada principalmente por pessoas idosas, já que os jovens foram buscar oportunidades de emprego em outra região. Estes homens e mulheres solitários levam uma vida tediosa, sonhando com algum acontecimento importante, que talvez venha de um milagre religioso, de uma orgia ou do estranho clarão no céu.

Crítica

É difícil se situar no universo particular de Destello Bravío (2021). As cenas soam desconexas, apresentando uma dúzia de personagens - alguns deles vistos em planos tão abertos e distantes que sequer enxergamos seus rostos. As imagens ora transmitem um teor realista, próximo do documental (a rotina na cidadezinha pacata), ora sugerem a chegada de um fenômeno sobrenatural (vide a imensa lua verde e a aparição fantasma em extra-quadro). Durante a integralidade da trama, os homens e mulheres idosos desempenham tarefas triviais, conversando no bar e visitando as comadres, sem vontade ou objetivo precisos - eles se limitam a transitar de uma casa à outra, e de volta à sua no fim do dia. A cineasta Ainhoa Rodríguez não apresenta nenhum conflito digno desse nome, ou seja, nenhum confronto de vontades ou transformação de personagens. A mulher com deficiência intelectual será o alvo de piadas dos habitantes, do início ao término. O mesmo vale para a mulher fofoqueira, a mística, aquela conhecida como “puta”. As pessoas permanecem estranhamente idênticas a si próprias - algo raro para o cinema clássico-narrativo. O clarão mencionado pelo título resulta em algo menos espetacular do que poderia sugerir.

A diretora busca o humor do desconforto e do inesperado, por meio dos enquadramentos, luz e montagem, ao invés dos diálogos - este exato roteiro, nas mãos de outra pessoa, poderia se converter num drama tedioso. Ora, ela resolve a maioria de suas cenas em um ou dois planos, em enquadramento fixo, escondendo algum personagem pelo limite do quadro ou por estar atrás de outra pessoa. Na televisão, um homem declara o amor à mulher que o deixou, implorando que volte, enquanto uma alta risada em off ridiculariza o ato de romantismo num programa popular. Nas conversas a dois, enxergamos apenas um dos participantes. Cenários anódinos e vazios se repetem, sem função aparente a princípio - caso do grande salão vazio de uma casa chique, e do teto onde se encontra o lustre luxuoso. Depois, pela repetição, Rodríguez ressignifica estes espaços banais: um urubu toma conta do primeiro, e o teto passa a ser lambido por um senhor idoso, declarando que, dessa vez, a pintura tem gosto de laranja. Estes elementos são abandonados pelo caminho, assim como as demais citações irônicas, despejadas pelo simples prazer de fazê-lo. O filme prefere sugerir a chegada da fantasia a mostrá-la de fato: a narrativa pode ser considerada o prelúdio de uma ficção científica interrompida.

O resultado navega de maneira inesperada entre a crônica e a magia, sem meio-termo. A certa altura, quatro senhoras tomam o chá da tarde enquanto fofocam sobre a vizinha. Alguns minutos depois, embarcam numa orgia, acariciando o rosto, o cabelo e os corpos umas das outras. Isso realmente ocorreu? Seria um delírio, um sonho? Estas hipóteses se sustentam pelo fato de o longa-metragem retirar do espectador as noções de tempo, espaço e finalidade. Jamais descobrimos onde exatamente estas figuras moram, e de que vivem os idosos no local desprovido de jovens. Na ausência de marcos precisos de uma época, face a figurinos antiquados que poderiam perdurar até hoje, compreendemos que a aventura se desenvolve em algum ponto entre os anos 1950 e atualmente. Ouve-se tiros no andar de cima, mas nunca compreendemos a relevância deste espaço - sobretudo, em se tratando de uma cidadezinha onde existem apenas casas térreas. Diretores apaixonados pelas ferramentas de gênero aproveitariam os barulhos estranhos para indicar um mal coletivo, uma perturbação social - caso do brasileiro A Máquina Infernal (2021), por exemplo. Ora, a obra espanhola se posiciona num estágio anterior, onde as ações não geram reações.

Por isso, é plausível falar em um filme inconsequente - embora por escolha deliberada, contrária a um erro ou incapacidade da cineasta. O resultado é coeso em sua proposta de desconstrução da linearidade, encarando cada fragmento como uma microperformance, ao invés da causa ou consequência da cena seguinte. Uma mulher é abusada e humilhada por homens, mas depois, o fato é descartado. Uma morte poderia transformar o enredo num suspense, porém o roteiro prefere esquecer o caso. A mulher fugidia nunca retorna; a cidade mágica de Alelú (onde há excrementos sabor caramelo e lentilhas) é dispensada a seguir. A cineasta demonstra maior prazer em criar ideias do que em desenvolvê-las, convertendo seu projeto num amplo brainstorming de conceitos orquestrados de modo esteticamente coerente, e narrativamente caótico. Em consequência, as atuações desempenham função secundária: o elenco posa para a câmera, nos enquadramentos estipulados, ou se toca e se esfrega para o prazer da câmera, mas foge a uma composição no sentido estrito do termo - afinal, eles são destituídos de passado, futuro e uma psicologia definida. Um dos motores de estranheza decorre da escolha de situar esta fábula atemporal e labiríntica num eterno presente. A cena final poderia ser trocada com a primeira, sem dano à experiência do público.

Talvez a discussão mais interessante decorra da aproximação entre o conservadorismo religioso e a sexualidade perversa, ou pelo menos fora de um escopo socialmente controlado. No local interiorano e tradicional, onde a intimidade alheia sofre profunda vigilância, o afeto e o erotismo se tornam grotescos. A mulher tola é abusada por garotos, a menina faz uma apresentação nua para um anônimo fora de quadro (ou seria apenas para a câmera, e para o espectador?), as senhoras se livram à orgia, a vizinha se masturba de pé, na cozinha. No final, todos participam de uma procissão religiosa com estátuas gigantescas do Cristo crucificado e de Nossa Senhora. Os tiros lá fora, o clarão no céu, o teto saboroso e a lua assustadora sugerem a presença de um mundo fascinante longe do alcance dos personagens. Presos à existência inerte, eles gravam a própria voz, inventam mundos mágicos, mas voltam à cama de sempre, ao lado da pessoa com quem dormem há décadas. Paira um aspecto pessimista nesta narrativa onde o sobrenatural não constitui a possibilidade de fuga, somente a lembrança de uma excitação (afetiva e sexual) que eles jamais poderão ter. Trata-se de uma obra sobre pessoas apáticas com imaginações maravilhosas.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Chico Fireman
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