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Sinopse

Rahim está na prisão por causa de uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma licença de dois dias, ele tem contato com uma bolsa feminina perdida, repleta de moedas de ouro. Em conflito sobre o destino que deveria dar a esse dinheiro, acaba devolvendo o objeto à dona. A notícia de sua honestidade chega à mídia e favorece a possível liberdade de Rahim - até começarem os boatos de que a história da bolsa não passou de uma farsa.

Crítica

Desde o lançamento de Procurando Elly (2009), pelo menos, Asghar Farhadi se tornou conhecido não apenas como um ótimo cineasta e diretor de atores, mas sobretudo um roteirista excepcional. O artista iraniano consegue partir de um evento único com consequências graves a diversas pessoas, caso em que a solução para um implica no prejuízo do demais. Em suas fábulas morais, evita a introdução de reviravoltas externas para fazer a trama evoluir, acreditando que os embates humanos constituem motores suficientes de tensão. Ele equilibra uma dezena de personagens envolvidos simultaneamente no conflito, cada um dotado de uma psicologia e um comportamento próprios. Além disso, domina a difícil arte do "enquanto isso”: conforme a jornada acompanha os passos de um personagem em particular, sabemos o que os demais estariam fazendo em paralelo. O mundo nunca para, de maneira acessória, para o desenvolvimento do problema: ao mesmo tempo em que lidam com as provações, os protagonistas ainda precisam trabalhar, cuidar das crianças, lavar as roupas, devolver um objeto emprestado ao vizinho etc. Assim, o cineasta traz diferentes classes sociais e gêneros para dentro do conflito unitário, efetuando um panorama amplo da contemporaneidade.

Após demonstrar uma queda de rendimento em produções filmadas na França e na Espanha, Farhadi volta à melhor forma com Um Herói (2021), realizado novamente em seu Irã natal. O motor de problemas, desta vez, é uma bolsa feminina contendo moedas de ouro, encontrada por acaso pela namorada de um homem preso por não saldar suas dívidas. Rahim (Amir Jadidi) encontra neste “milagre" a oportunidade perfeita de pagar parte do que deve, e talvez conseguir a soltura. Quando recebe uma resposta negativa do credor, devolve a bolsa à dona e passa a ocupar as manchetes dos jornais por ser um “detento honesto”, segundo a mídia. O pequeno evento toma proporções inimagináveis, que escapam à alçada deste homem. Rahim se vê transformado em objeto de adoração ou acusação: enquanto parte do país o vangloria pela devolução das moedas, outra parte levanta suspeita a respeito da veracidade do ato. Não teria sido uma farsa para acelerar sua soltura? O diretor concebe um ataque violento de reputações, uma “disputa de narrativas” na acepção moderna no termo. Embora o espectador saiba desde o começo o que o detento realmente fez, ele será incapaz de provar as circunstâncias exatas da devolução. Versões contraditórias, seja dele ou de pessoas próximas, lançam dúvidas a respeito da honestidade deste “herói”. A bolsa contendo ouro representa uma bênção e uma maldição.

Aos poucos, o longa-metragem se converte em algo inédito para as iniciativas do iraniano: uma trama a respeito das fake news e do poder nocivo das redes sociais. Estes elementos têm sido explorados de maneira caricatural em filmes de terror e dramas moralistas, porém Farhadi encontra alternativas orgânicas para incluir a discussão sobre a imagem de si e dos outros. As mídias digitais se convertem num fator delicado, sobretudo em nações islâmicas, focadas num senso de honra e integridade (pessoal e familiar) mais forte do que aquele de sociedades ocidentais. Vídeos gravados com celular despertam a impressão de um sujeito bondoso e sofredor, ou então perverso e agressivo, dependendo do ângulo, da edição e da contextualização. Para combater uma versão falsa, gera-se outra versão fictícia, numa guerra de produções audiovisuais que se distanciam, cena após cena, do acontecimento original. O drama aborda em chave vertiginosa a época em que todo indivíduo possui um material de gravação no bolso, transformando-se em diretor e precisando lidar com as consequências éticas deste cargo. A discussão se espelha no próprio cinema, de maneira metalinguística, ao assumir sua responsabilidade em relação ao material exposto. No império da virtualidade, aprendemos através da tentativa e erro como nos posicionar e nos retratar de eventuais passos em falso. O recurso surgiu antes de suas regras de utilização.

Apesar da trama asfixiante e veloz, com inúmeras guinadas de perspectiva, Um Herói surpreende por adotar certa leveza devido à proximidade com a comédia do absurdo. A sequência onde membros de uma instituição doam somas generosas de dinheiro ao “detento honesto” se assemelha à cobrança do dízimo nas igrejas neopentecostais, já o jogo de manipulações e chantagens com a direção da prisão e com o credor se aprofundam a limites impensáveis. Junto ao empregador, meia dúzia de personagens apresentam uma forma de teatro amador. O roteiro adota a chave da gradação, intensificando o dilema da bolsa ao sugerir possíveis falhas na versão que, a princípio, aparentava tão simples. O filme se converte em pesadelo cênico capaz de testar nossa crença na ficção, já que os fatos revelam possíveis falhas de veracidade - aparentemente, o testemunho não garante a interpretação correta das circunstâncias, e nossa tendência a enxergar a leitura desejada impera sobre a verdade. Projetamos sobre o real aquilo que esperamos dele, de modo que o olhar humano "pode alterar o mundo", como diria a filosofia. Em outras palavras, é impossível dissociar nossa subjetividade da percepção dos fatos, e a objetividade total seria impossível. Esta espiral provoca simultaneamente o horror e o humor, dois lados simétricos do desconforto. 

Além disso, o filme conta com atuações excelentes, a começar por Amir Jadidi no papel principal. Ele mantém o sorriso tímido e o olhar baixo, mas se presta a pelo menos duas explosões de violência que nos fazem duvidar do temperamento comedido. Em se tratando de uma história construída a partir do olhar de terceiros, sem ser contada pela perspectiva de Rahim, era fundamental que o protagonista permanecesse ambíguo e multifacetado até a conclusão. O credor Bahram (Mohsen Tanabandeh) e a filha adolescente dele, Nazarin (Sarina Farhadi) desempenham papéis fundamentais no relevo humano, algo completado pelo filho de Rahim, garoto com gagueira, encarnado por um comovente ator mirim. Farhadi encontra maneiras de incluir nesta ciranda a irmã de Rahim, a namorada do prisioneiro, os pais dela, o taxista que conduziu a dona da bolsa, a secretária da prisão, a presidente de uma associação contra a pena de morte, uma esposa tentando livrar o marido da execução, um criterioso e arrogante empregador, o chefe da polícia e outros personagens cujos caminhos se cruzam sem que nenhum deles seja esquecido pela trama ou exista apenas para Rahim. É justamente o fato de possuírem interesses próprios que os torna potentes e verossímeis. A jornada se encerra de maneira tragicômica, na conclusão mais provocadora do cineasta desde a cena final de A Separação (2011). A liberdade se converte literalmente numa questão de ponto de vista.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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