Crítica


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Sinopse

Simon e Hélène vivem em Paris. Após venderem o porão da própria casa a um professor de história, logo descobrem que o sujeito é um negacionista, que passa o dia espalhando notícias falsas sobre o Holocausto. Simon, vindo de família judaica, recusa a presença deste indivíduo no prédio, e começa uma batalha legal para anular a venda.

Crítica

Como agir face a uma pessoa que pensa de maneira diferente da nossa? Que argumentos podemos oferecer a um defensor da Terra plana, alguém que compartilha mentiras a respeito das vacinas e relativiza os horrores do Holocausto? Ou então face a vizinhos homofóbicos e parentes machistas? Esta constitui a delicada questão levantada pelo longa-metragem francês. O ponto de partida aproxima dois sujeitos percebidos como complementares, a princípio, e opositores, em seguida. Simon Sandberg (Jérémie Renier) mora num apartamento de classe média em Paris, e tem um porão a alugar. Ele encontra Jacques Fonzic (François Cluzet), sujeito procurando um espaço para colocar os objetos da mãe falecida. O acordo entre ambos se fecha com rapidez. Logo, as peças mudam: descobre-se que o primeiro é judeu, e o segundo, antissemita. Pior do que isso, o comprador decide viver no cubículo impróprio à habitação, e uma vez instalado, recusa-se a sair. A lei o protege contra eventuais despejos: Simon precisa acatar com o fato de estar abrigando, na propriedade familiar, um indivíduo que detesta sua existência. Já o adversário nutre certo prazer sádico nesta configuração irônica. A função do sujeito se torna retórica: ele pretende incomodar, e caso consiga, pouco importará o conteúdo de suas teorias conspiratórias. Fonzic constitui o inimigo ideal dos tempos de redes sociais e polarização política.

Em consequência, não há espaço para o acaso nesta demonstração exemplar do ódio contemporâneo. A representação se sobrecarrega de símbolos: o porão já abrigou, no passado, um judeu sobrevivente da perseguição nazista. Se Hitler utilizava a metáfora odiosa de baratas e ratos para se referir aos judeus, o filme trata de comparar o hóspede indesejado aos roedores. “Pelo menos eles lutam juntos”, o homem argumenta a seu favor. O local onde Fonzic utiliza a Internet constitui a mesma lanchonete visitada com frequência pela filha do casal, Justine (Victoria Eber). Depois, ele passa a visitar o local de trabalho da esposa Hélène (Bérénice Bejo). Voltando para casa, Simon encontra o oponente na rua. As coincidências tratam de acelerar o conflito e opor frontalmente os dois homens. A primeira cena se passa no porão, e a última também o será. É difícil determinar alguma sequência dissociada deste conflito opressor: no trabalho, na escola ou no treino de lutas marciais, os Sandberg expressam a raiva contra o novo morador do prédio. É legítimo nutrir ódio por aqueles que nos odeiam, e agredir (física ou moralmente) quem nos agride? Que ferramentas jurídicas e morais são postas à disposição em tais circunstâncias? O roteiro se deleita com a crônica de um impasse de proporções cada vez mais graves.

Esta premissa poderia dar origem a um drama realista, nos moldes que os irmãos Dardenne, por exemplo, gostariam de abraçar. No entanto, o cineasta Philippe Le Guay mergulha no suspense psicológico, marcado pela trilha sonora tensa e a sensação de absurdo digna de uma fábula kafkiana. Esta escolha gera as principais forças e fraquezas do projeto. Por um lado, o aspecto próximo do realismo fantástico permite que diversas coincidências se justifiquem: afinal, os protagonistas representam grupos sociais, para além de casos individuais. Por outro lado, a transformação do sujeito negacionista num vilão perigoso, capaz de despertar a paranoia profunda na família judia, tende a ignorar nuances e privilegiar um registro exagerado de sensações. O sujeito de discurso brutal e fala dócil jamais oferece uma ameaça física. Em contrapartida, o roteiro o converte em monstro asqueroso para a família central. “Ele é um negacionista!”, gritam exasperados uns com os outros, no tom de quem se exclama: “Ele está vindo nos matar!”. O diretor acentua as diferenças ao materializar o discurso agressivo numa violência concreta, palpável. Aqui, as palavras ferem como facas, o que soa tão ousado quanto absurdo em termos metafóricos.

De fato, o diretor acostumado às comédias dramáticas agridoces demonstra uma condução pesada diante da gravidade do tema. O antagonismo entre os dois homens forneceria motores dramáticos mais do que suficientes. Entretanto, o roteiro vai além: imagina-se o retorno das pichações e marcas de “judeu" nas portas das residências, a possível sedução de uma garota rebelde pelas ideias da extrema-direita, uma mancha de mofo simbolizando o perigo do negacionismo que se alastra pelo edifício, quiproquós envolvendo advogados e escrituras de propriedades, e sobretudo, a ilustração nada sutil de uma nova câmara de gás dos tempos contemporâneos. Haja coragem (ou ingenuidade, ou audácia, ou despropósito) de introduzir uma metáfora de tamanho simbolismo no cinema atual. No elenco, François Cluzet busca atenuar a monstruosidade do vilão por meio da voz doce e inalterável, além de um trabalho de corpo que combina o profeta enlouquecido de praças públicas com o cidadão em situação de rua. Enquanto isso, Jérémie Renier e Bérénice Bejo deixam de lado qualquer moderação para abraçarem um revanchismo tão histérico que leva o espectador a suspeitar - voluntariamente ou não — que os Sandberg sejam os verdadeiros vilões contra o pobre negacionista. A rejeição sofrida pela obra em seu país natal decorre desta ambiguidade, capaz de enxergar “pessoas ruins dos dois lados”, para emprestar o raciocínio trumpista.

De fato, Um Intruso no Porão (2021) se confronta a uma discussão importante, ainda que de maneira extremada e desajeitada. “Ele está sozinho com seu ódio. Nós estamos unidos, e nos amamos”, afirmam os diálogos pouco sutis, e também irônicos — afinal, os Sandberg espumam de raiva, enquanto o tipo indesejado pede que o deixem em paz em seu universo delirante. “E o meu direito de expressão de insultar pessoas por sua etnia e religião?”, parece afirmar sarcasticamente o “homem do porão”, segundo o título original, em sua resiliência messiânica. O diretor mergulha o público num caldeirão histórico, político e moral sem meios-termos, evitando assumir um posicionamento claro em favor de um e de outro — para Le Guay, o sistema está corrompido, e tornamo-nos incapazes de conviver com a diferença. O fato de enxergar Simon e Jacques com igual respeito (ainda que o ponto de vista pertença ao primeiro), atribuindo falhas a ambos, será enxergado por alguns como sinal de respeito e moderação, e por outros, como posicionamento político isento e conformista. Para compreendermos os adversários, é preciso humanizá-los a ponto de atenuar sua agressão? “Humanizar" o antissemita, neste caso, seria igual a desculpá-lo? É louvável que a obra francesa mexa neste vespeiro, embora careça de um discurso mais claro. Para um debate tão incendiário, seria necessário um discurso firme e unívoco.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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