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Crítica


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Sinopse

Uma mulher descobre que está sendo traída pelo marido, Os dois tomam medidas extremas para conseguirem o que querem, demonstrando assim como é tênue a linha que separa o amor do ódio. E as tragédias se acumulam.

Crítica

O primeiro filme original Netflix da Dinamarca começa defendendo uma tese, no mínimo, controversa: a de que o amor é perigoso. Não porque os amantes se jogariam de cabeça nos relacionamentos e baixariam as suas guardas, assim estando vulneráveis sentimentalmente. Mas, porque os números de crimes passionais seriam um indício consistente de que sentir-se apaixonado é o suficiente para se tornar um homicida em potencial (de onde tiraram isso?). A cineasta Barbara Topsøe-Rothenborg poderia aproveitar o ensejo para falar de feminicídio, por exemplo? Claro, mas para isso teria de fincar muito mais os pés da narrativa no chão e deixar de lado a pegada de novelão repleto de gente obsessiva, algozes e vítimas simplórios. Um Marido Fiel é contado pelo investigador que relata à sua filha a história rocambolesca envolvendo traições, dissimulações, mentiras e sangue. Bom, o fato de a trama ser descortinada por alguém não faz a mínima diferença. Levando em consideração que 95% do que vemos é fruto do relato do homem da lei anteriormente incumbido do caso, poderíamos esperar alguma nuance singular. Seria ele um narrador não confiável? Ou mesmo alguém contaminado demais pelo envolvimento pessoal, ao ponto de não conseguir ser claro e objetivo? A vitimização do homem criminoso seria fruto da insuspeita identificação do narrador? Nada disso é sequer elaborado.

Portanto, o narrador vale o quanto pesa a brincadeira final. Nada mais do que isso. Sobre o enredo que ele está contando, temos como protagonista Christian (Dar Salim), um bem-sucedido homem de negócios que vive um caso extraconjugal com Xenia (Sus Wilkins), a sua promissora colega de trabalho. Pressionado pela amante a escolher entre ela e a família, o sujeito vai ter de encarar a esposa, Leonora (Sonja Richter), uma ex-musicista que abdicou da carreira em prol da restituição da saúde do filho adolescente do casal. Então, não basta a lenga-lenga envolvendo chifres, lorotas e pressões, também há esse pano de fundo de uma doença grave que teria sido a grande responsável por distanciar (inclusive sexualmente) uma dupla que se conhecida desde a juventude. Em meio aos diálogos pobres com implicações desprovidas de nuances, Christian é aconselhado a procurar uma antiga amiga da esposa (?). E numa das cenas mais constrangedoras do filme, assim, do nada, a desconhecida conta ao sujeito que sua antiga parceira é suspeita de ter matado o namoradinho da adolescência que também ameaçava larga-la na época. E, partindo disso, o filme inexplicavelmente antagoniza o homem que supostamente "fez o que deveria" para se proteger e uma mulher de constante semblante maligno forçado.

Sonja Richter carrega demasiadamente nas tintas vilanescas de sua personagem. Leonora está a todo o momento com uma expressão de quem poderia matar gatinhos recém-nascidos sem o mínimo de culpa. Sempre que a personagem fala com o marido, é escancarado um desequilíbrio emocional e mental, o que acentua sua aura de figura perigosa. Mas, pasmem: quem comete um crime hediondo é ele ao assassinar alguém pensando que com isso acabaria com os problemas matrimoniais. Forçando a barra para o espectador acreditar num equívoco grosseiro – todas as pessoas que correm à noite nas redondezas se vestem como o chapeuzinho vermelho entrando na floresta do lobo mau? –, a realizadora não sabe lidar bem com a troca de estatuto dos personagens. Enquanto há suspeitas de que Leonora matou o antigo namorado, há a certeza de que Christian assassinou alguém a sangue frio. E o que o filme faz com essa novidade?  Continua observando o homem como uma vítima da esposa transtornada, quando muito apresentando lampejos de uma culpa masculina pouco convincente. Ademais, existe uma distância brutal que o roteiro sequer encara: provavelmente, Leonora tem realmente um distúrbio mental, o que a diferenciaria fundamentalmente do marido “coitadinho” que cometeu um crime atroz enquanto estava de posse plena das suas faculdades mentais.

Para Barbara Topsøe-Rothenborg tudo é um bolo uniforme. Não há diferenças, nuances, gradações, ou seja, o filme é um prato raso pelo qual transbordam os problemas de conceito, discurso e execução. A cena de Leonora sendo confrontada pelo olhar debochado da amante durante o sexo faria corar as bochechas dos cineastas da saga Emmanuelle. Não pelo conteúdo erótico, mas por conta da grosseria de um gesto de provocação que não encontra respaldo no comportamento de Xenia. É como se a amante fosse possuída por um espírito zombeteiro na hora. Christian continua entendido necessariamente como um homem acuado, haja vista a quantidade de atenção que a realizadora investe na sua sensação de estar encurralado. Enquanto isso, Leonora gradativamente recebe mais contornos monstruosos, sendo servida ao espectador na mesma bandeja que ele se serve de histórias de assassinos em série e/ou de outros personagens que são a mais pura encarnação do mal. Voltando ao narrador. O fato de ele ser um homem poderia explicar as tintas de vítima para Christian e de algoz para Leonora? Sem dúvida. Mas, para isso acontecer a cineasta precisaria enxergá-lo como um personagem dotado de subjetividade e não apenas como aquele que detém os subsídios para satisfazer a curiosidade alheia. Enfim, um original Netflix daqueles frágeis, insossos e bastante sonolentos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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