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Sinopse

Um Mundo à Parte: Michele Cortese é um professor do ensino fundamental que, após 40 anos ensinando na caótica Roma, Itália, encontra a oportunidade de uma nova vida. Ele consegue uma transferência para o Instituto Cesidio Gentile, conhecido como Jurico: uma escola com uma única turma mista de crianças entre 07 e 10 anos. Com a ajuda da vice-diretora Agnese e das crianças, Michele supera suas dificuldades com o ambiente rural e se integra à comunidade. Exibido no Festival de Cinema Italiano no Brasil 2024.

Crítica

Michele (Antonio Albanese) carrega nas costas 40 anos de magistério. Embora seja um professor experiente, está de saco cheio de lecionar para crianças desinteressadas que desafiam a autoridade dos mestres com os seus celulares onipresentes em mãos. Então, ele decide pedir transferência temporária para uma região montanhesa remota, onde supostamente a tecnologia não deu conta de fritar os neurônios dos alunos. A partir disso temos o clássico personagem que chega repleto de esperanças ao lugar visto previamente como cenário propício a uma vida melhor, mas cujo romantismo é gradativamente desmontado pela dureza da realidade. De cara, Michele tem dificuldades para ultrapassar uma barreira de neve e precisa ser resgatado pela vice-diretora, Agnese (Virginia Raffaele). Quando finalmente chega ao colégio, o mestre se depara com a turma mista de alunos do primeiro, do terceiro e do quinto ano do fundamental, numa cidade que praticamente não tem atrativos para adolescentes. Todo o primeiro terço de Um Mundo à Parte é dedicado a mostrar as dificuldades do protagonista para se integrar àquele lugar gelado – e um fator complicador é o homem não saber, sequer, acender o fogão a lenha que garantiria o conforto na nova casa. Uma vez aclimatado, ele é apresentado ao problema: como a escola tem poucos alunos, está seriamente ameaçada de fechar. E agora? O que fazer?

Um Mundo à Parte não é um filme de personagens. Por isso não investe profundamente na psicologia e nos dilemas das pessoas. Com uma pegada leve que, quando muito, às vezes se aproxima do agridoce, o longa-metragem selecionado para o 19ª Festival de Cinema Italiano no Brasil coloca o aspecto humano subordinado a uma discussão político-econômica. Afinal de contas, a cidade vizinha faz de tudo para boicotar a escola onde Michele passa a lecionar. Desse modo, o forasteiro recém-chegado é convocado a fazer parte de uma brigada de resistência, dos esforços da comunidade para evitar o fechamento do colégio e a possível decadência do próprio lugarejo. Aliás, está aí o apontamento bonito dessa comédia despretensiosa: uma comunidade que gira em torno da existência da sua escola, desse celeiro de mentes pensantes capazes de garantir a existência de um futuro. Diferentemente de outros filmes que mostram localidades ameaçadas pelo fechamento de uma fábrica ou mesmo de alguma unidade de comércio, aqui a continuidade das tradições depende fundamentalmente da manutenção do colégio aberto. E como cada setor dessa pequena sociedade sabe muito bem disso, em um momento todos unem forças para garantir novas matrículas, mesmo sabendo que a baixa natalidade das montanhas é um grave impeditivo. Mesmo “usando” os refugiados pensando somente em benefício próprio.

O diretor e roteirista Riccardo Milani repete uma história à qual estamos bastante acostumados, não contando com surpresas ao apostar todas as fichas nessa missão nobre que o forasteiro e os locais assumem como algo essencial. Afinal de contas, a quantos filmes você já assistiu em que uma comunidade vulnerável consegue vencer uma enorme adversidade com a ajuda (e liderança) de um estrangeiro que a guia rumo à vitória? Desse modo, Michele não seria, em essência, muito diferente do soldado cuja consciência é transportada para um clone de Na’Vi na ficção científica Avatar (2009) ou de outros inúmeros protagonistas que representam esse ideal do salvador externo. Diante dessa nova história criada em torno de alguém com as citadas características, as únicas questões a serem respondidas é: o protagonista encontrará nesse local improvável a felicidade perseguida? No fim das contas, quando conseguir vencer o mal que paira sobre as cabeças dos novos amigos e amor, ele ficará ou será obrigado a retornar para a sua própria realidade (seguramente renovado e transformado)? O realizador não faz muita força para desviar dos clichês, pelo contrário, os abraçando conscientemente a fim de construir um trajeto em que o destino é a moral da história. Tanto que coloca no caminho do protagonista até a nova oportunidade de amar. Assim, fecha-se o ciclo virtuoso em torno de um sujeito bondoso.

Como Um Mundo à Parte não é um filme de personagens, mas de situações, os dilemas, as dúvidas, as reflexões íntimas, as contradições, tudo isso acaba ficando em segundo plano. O mais importante é que as pessoas se juntem para garantir a sobrevivência da escola e, por consequência, da pequena comunidade que dela depende. Pena que nesse processo de se apegar aos lugares-comuns de maneira desavergonhada, Riccardo Milani não elabore tanto quanto poderia as singularidades do local acostumado à presença de matilhas de lobos. Também é lastimável que ele passe tão rapidamente (de modo quase gratuito) pela melancolia da jovem homossexual que quase protagoniza uma tragédia – é como se o diretor quisesse apontar o obscurantismo da localidade, mas sem pesar a mão na crítica com medo de comprometer a simpatia do espectador pelos moradores. Desse jeito, entre simplificações e constatações pouco elaboradas, o filme vai caminhando aparentemente sob gelo fino, mas na verdade está transitando por um terreno firme repleto de preconcepções e inclinações moralistas. Mas, feitas todas as ressalvas, ele é um exemplar charmoso, sobretudo, pelos personagens envolvidos. A peculiaridade das pessoas poderia ser mais bem trabalhada, mas ainda assim garante quase duas horas de um entretenimento leve com alguns pontos propícios para a reflexão do estado das coisas num mundo em que a educação parece condenada a ser sempre a sobrevivente valente.

Filme visto no 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil em novembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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