Crítica
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Sinopse
Na China dos dias contemporâneos, quatro pessoas de regiões e classes sociais muito distintas se cruzam. A história, descrita como um "road movie com cenas de ação", passa tanto pela barulhenta metrópole de Guangzhou quanto pela calma província rural de Shanxi.
Crítica
Parte das transformações sócio-econômicas chinesas, elemento central na obra do cineasta Jia Zhangke, a natureza predatória do capitalismo surge com tintas brutais em Um Toque de Pecado. São quatro histórias interligadas superficialmente por sutilezas, encontros com ares de acaso, mas umbilicalmente relacionadas pela selvageria intrínseca ao protagonismo do dinheiro numa realidade por ele bastante modificada. Os abismos gerados pelo desequilíbrio dessa balança coletiva, cujos agentes principais são os mecanismos de concentração (não de distribuição equânime) de renda, são constatados como, inclusive, encarregados da gradativa perda da identidade do povo marcado por sua reverência à tradição e à ancestralidade. Na primeira das tramas, Dahai (Jiang Wu) é o único que demonstra insatisfação pela privatização da mina de carvão de sua vila. Indignado quanto às promessas vazias dos cedentes, beneficiários de propinas, e do antigo colega de escola que ficou milionário sugando um bem anteriormente público, ele se rebela com as armas à mão.
Sintomático que na cruzada para exterminar esses exploradores do povo, isso depois de ser humilhado, principalmente alertado quanto à soberania da força física, instância felizmente também disponível aos não abastados, Dahai encubra sua espingarda com um tecido vistoso de conteúdo nada aleatório. A estampa é de um feroz tigre amarelo, símbolo de poder, força e independência. Todavia, especificamente o espécime do desenho que reveste a arma representa igualmente o governante da terra e de suas energias. Portanto, é lírico que o “tigre” faça justiça, reclamando a propriedade da mina de carvão, reivindicando que recursos naturais não tenham proprietário, mas que sirvam a todos, ou seja, opondo-se a um princípio do capitalismo. No segundo segmento, Zhou San (Wang Baoqiang), jovem que no começo do filme atravessa o caminho de Dahai após matar a sangue frio três assaltantes, volta à sua terra para comemorar os 70 anos da mãe e, de quebra, rever mulher e filho. Levado ao crime pelas engrenagens do país demarcado por desigualdades, ele se vira.
O cineasta Jia Zhangke mostra Zhou San num espaço familiar, mas caracterizado pelas silhuetas imponentes dos espigões da paisagem além do rio, águas que separam a China comunitária, de costumes e peculiaridades territoriais preservados, da que se ergue de modo apressado como megapotência. Uma espécie de agente informal desse mundo em que a violência decorre dos novos arranjos mediados pelo dinheiro, ele é um sujeito calado, com claras dificuldades de demonstrar carinho. É especialmente bonita a cena de Zhou acompanhando o filho numa caminhada noturna sob a luz dos fogos de artifício que celebram o Ano-novo, quando recorre à sua ruidosa arma, único expediente à disposição para contribuir com o instante de alegria do menino. Zhou San é, apesar da deflagrada frieza na execução minuciosa de seus crimes, vítima dessa dissonância acarretada por uma metamorfose acelerada. A inquietude com sua origem e o fetiche pelas armas são fruto disso.
Zhao Tao vive a atendente de sauna na terceira parte, mulher castigada por viver um caso extraconjugal. Em virtude da estrutura machista da sociedade chinesa, ela é apontada como vilã. Logo adiante, a tentativa dos clientes de fazê-la ceder ao dinheiro e à força bruta, também um indício do falocentrismo anabolizado pela acumulação de dividendos, aqui oriunda de um poder paralelo, destrava a sua agressividade. A ela resta apenas apelar ao revide, talvez à única “língua” comum a todos os personagens de Um Toque de Pecado, a fim de preservar-se da sanha alheia. Jia Zhangke aproveita essa resposta colérica para aludir estilisticamente ao cinema chinês de artes marciais, fazendo momentaneamente de Tao uma expert, com direito a detalhe na expressão de letalidade deliberadamente discrepante de sua personalidade. A prostituta do último segmento, mais notadamente o penhor do corpo e da dignidade para sobreviver ao entorno oneroso, é também indicativa.
Um Toque de Pecado conjuga personagens amalgamados nessa China em processo de despersonalização. Hui Xiau (Luo Lanshan) é o exemplar da juventude desorientada, sem bases estruturais sólidas às quais se apegar. Depois do acidente laboral do amigo, foge para não lidar com a responsabilidade a ele imputada. Num outro espaço, ao pressentir o sofrimento iminente diante da paixão pela menina que aluga seu corpo à luxúria alheia para salvaguardar o futuro da filha, não pensa duas vezes e novamente escapa, evitando arcar com o peso de suas emoções e desejos. Corroborando a sinalização de uma nova geração um tanto perdida, despreparada para enfrentar intempéries – efeito colateral do meio social em que crescem sem muitos pilares –, Jia Zhangke mostra o sujeito evadindo definitiva e melancolicamente do entorno disforme e pernicioso, como apresentado em todos os fragmentos do longa-metragem, desse país que crescentemente cede às duras leis dos mais ricos.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 8 |
Chico Fireman | 6 |
Francisco Carbone | 8 |
Cecilia Barroso | 7 |
Roberto Cunha | 8 |
MÉDIA | 7.4 |
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