Crítica
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Crítica
O obscurantismo abreviou a vida de Aynur, cidadã alemã de ascendência turca, criada sob uma égide religiosa que diminuía sua individualidade ao atrelá-la aos desmandos patriarcais, ancorando-a nos desígnios de leis escritas para beneficiar a primazia masculina. Em Uma Mulher Extraordinária, filme baseado em fatos decorridos em Berlim entre o fim dos anos 90 e 2005, a protagonista é interpretada por Almila Bagriacik, que não apenas representa a assassinada, mas também dá voz à sua triste narração pós-morte. Provavelmente intentando aumentar a dramaticidade do relato que comporta homeopáticas doses documentais, a cineasta teuto-americana Sherry Hormann utiliza as reminiscências de alguém que se foi e, assim, faz dela, além de uma fonte privilegiada de informação quanto aos fatos que culminaram em tragédia, uma testemunha ficticiamente atravessada pela melancolia de encarar tudo depois que a selvageria se encontra consumada.
Uma Mulher Extraordinária é construído sobre uma base praticamente didática, com Aynur mencionando pormenorizadamente as regras por ela infringidas, transgressões da tradição muçulmana que, de certa forma, dentro de uma lógica torpe, “autorizaram” consanguíneos a agirem como boçais, forçando a animosidade às raias da barbaridade. O caso da filha de imigrantes ficou famoso justamente porque ela foi assassinada a sangue frio pelo irmão caçula, sob a alegação de “crime de honra”. Esse processo de explicar detalhadamente tais engrenagens entrando em colapso tem a ver com a vontade de comunicar-se com uma plateia ocidental e evitar mal-entendidos. A falecida chega a dirigir-se diretamente aos espectadores germânicos, dizendo-se ciente das dificuldades à compreensão daquilo em virtude da língua e dos costumes. Aliás, a partir daí o filme passa a ser falado em alemão, algo que fica entre a condescendência, a praticidade e a concessão.
O artifício do narrador morto, algo que nos é caro, especialmente, por conta de sua utilização excepcional no clássico romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, acaba perdendo terreno no andamento de Uma Mulher Extraordinária, gradativamente ficando circunstancial e sem a mesma importância do começo, quando parecia um dispositivo essencial. Todavia, mesmo assim, o longa-metragem permite uma leitura incisiva da crise entre a mulher que deseja viver plenamente sua juventude, gozar de direitos supostamente simples, como escolher parceiros amorosos/sexuais e arbitrar sobre os rumos do cotidiano, e a tradição asfixiante que rege sua família. Sherry Hormann não faz força para criar áreas de complexidade com relação ao islamismo, dispondo exemplos negativos, prontamente condicionados pelo fanatismo que leva à ausência de empatia e humanidade. Esse é o maior ruído da narrativa, no mais das vezes, sensível às vozes oprimidas das vítimas.
A aproximação entre ficção e realidade se dá, principalmente, quando a realizadora lança mão de arquivos da Aynur verdadeira. Também essa bem-vinda fricção, que substancia a pegada melancólica, é ampliada nos pontuais congelamentos de instantes capitais, pequenas fotografias configuradas como indícios de um arquivo de tramas que vão se entrelaçando habilmente. Embora o roteiro comporte várias facilidades e incorra em caminhos nem sempre tão claros – sobretudo quanto às idas e vindas entre Berlim e Istambul no começo do filme, inconsistência passível de criar confusões –, Uma Mulher Extraordinária carrega uma mensagem poderosa, a da urgência de rever determinadas condutas que colocam a mulher como o estopim do pecado, lógica que, em certas culturas, lhe extirpa a individualidade e, com as supostas bênçãos das divindades, cria terrenos para uma opressão institucionalizada, normalizada por fundamentos excludentes e tão perigosos.
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