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Sinopse

Adela e Juan formam um casal mexicano que imigrou ilegalmente nos Estados Unidos. Passada a primeira experiência com o expurgo anual, quando todos os crimes são permitidos durante 12h, eles descobrem que os cidadãos não estão dispostos a interromper a matança. Enquanto grupos de fanáticos tomam as ruas exigindo uma "limpeza étnica", Adela e Juan precisam encontrar uma maneira de sobreviver.

Crítica

A saga Uma Noite de Crime parte da tentativa de compreender a violência como traço intrínseco à cultura norte-americana. Obviamente, há problemas de segurança em inúmeros países, mas os Estados Unidos têm priorizado o direito de adquirir armas ao direito à saúde, moradia e emprego - e embora se esforce para copiar este modelo, o Brasil permanece distante desta realidade. O princípio de uma noite onde todos os crimes são permitidos em nome do “direito à liberdade (de eliminar o inimigo)” possui tamanho potencial político e cinematográfico que permitiu desenvolvimentos orgânicos, ao invés da simples reprodução da premissa inicial em sequências oportunistas. Após a invasão doméstica numa casa rica na produção original (2013), o segundo volume investiga o expurgo nas ruas da cidade (2014); o terceiro filme imagina o valor eleitoral e eleitoreiro desta medida (2016), e o quarto filme analisa o estopim capaz de instaurar a prática pela primeira vez (2016). Uma Noite de Crime: A Fronteira (2021) explora outro desdobramento lógico do conceito: o que aconteceria se grupos inflamados mantivessem a prática do expurgo, passadas as doze horas permitidas de carnificina? Esta sempre foi uma questão subjacente nas histórias de James DeMonaco: quando se fornece aos indivíduos o direito de matar, por que aceitariam tão pacificamente a suspensão do passe livre? 

O retrato dos fanáticos empoderados por "fatos alternativos" vem a calhar dentro de um país cujo Capitólio foi invadido por incitação do ex-presidente, onde os tiroteios frequentes nunca levaram a uma regulamentação da posse de armas, nem o assassinato de George Floyd bastou para provocar a reforma do sistema policial. Existem motivos suficientes para sustentar a distopia dos “Estados Unidos do Ódio”, conforme narrado por uma apresentadora de televisão. A quinta produção é protagonizada por dois mexicanos que entram nos Estados Unidos ilegalmente através do frágil muro de Trump. Adela (Ana de la Reguera) e Juan (Tenoch Huerta) passam a trabalhar num açougue e na fazenda de uma família norte-americana privilegiada. Nos roteiros anteriores, os negros, pobres e pessoas de origem latina representavam o “outro”. Agora, o diretor Everardo Gout dá um passo além ao se posicionar ao lado de dois mexicanos ilegais, dentro de uma trama com inúmeros diálogos em espanhol, acompanhada pela canção-tema combinando as duas línguas. A tensão ao sul do Texas poderia conduzir à descrição estereotipada do imigrante - seja o sujeito frágil e encantado com o sonho americano, ou o tipo raivoso que habita o país vizinho apesar de secretamente detestá-lo; o tipo que logo sucumbe ao crime devido à falta de oportunidades; o mártir humilhado por um bando de perversos. A escolha de um cineasta mexicano para a saga antibelicista permite que a oposição americano-estrangeiro seja representada de formas mais complexas. 

Adela e Juan possuem habilidades valiosas a oferecer aos patrões texanos, cuja família é composta por uma mistura de conservadores fanáticos e pragmáticos homens e mulheres de negócios (discretamente racistas, porém felizes em encontrar mão de obra barata e babás a preço reduzido). O casal latino ostenta posicionamentos ideológicos distintos que se transformam conforme a noite de crime sai dos trilhos uma vez mais. As nuances políticas e sociais jamais cedem espaço à ingenuidade: os fazendeiros permanecem dominadores, e os empregados se sustentam em posição hierarquicamente inferior. Monaco retira o maniqueísmo moral, porém preserva a dominação socioeconômica que constitui a base da franquia e do capitalismo como um todo. O roteiro se converte numa ilustração voluntariamente exagerada do esgarçamento do espectro político rumo aos extremos: enquanto se multiplicam os supremacistas brancos (vide a figura asquerosa do sujeito com uma suástica tatuada no rosto, vibrando com o “som americano” dos tiros), mexicanos, indígenas e figuras marginalizadas coordenam a frente pela resistência. Ao contrário de obras políticas de reflexão mais densa (vide as iniciativas de Jordan Peele com a mesma produtora, a Blumhouse), Uma Noite de Crime: A Fronteira possui um raciocínio explícito até demais. O texto chama a nação de "terra indígena saqueada pelos brancos", afirma que estrangeiros são fundamentais para desempenharem o trabalho desprezado pelos cidadãos locais, e sugere que os Estados Unidos se tornaram incapazes de conter a violência promovida por si próprios.

A vantagem de apresentar o expurgo pela quinta vez se encontra em sua perversa “naturalização”: nas obras iniciais, a decisão do governo e dos indivíduos em se matarem pelo prazer de fazê-lo carregava consigo um aspecto de surpresa e indignação. Passado o espetáculo da medida excepcional, ela se converte numa prática cultural qualquer, semelhante ao 4 de julho ou às comemorações de guerras. As cenas de veículos do governo retirando cadáveres e limpando o sangue, filmadas com a banalidade de um boletim meteorológico, nos diz muito sobre nossa tendência a aceitar desigualdades enquanto parte inevitável de uma organização social. “Este país não sabe mais quem ele é”, grita uma garota branca de extrema-direita, amedrontada pela presença de mexicanos em seu estado. As ironias de se matar pela paz e de se repudiar o estrangeiro em meio a uma nação colonizada são bem exploradas pelo texto. O ponto de vista se configura de maneira tão coletiva e exteriorizada - existem meia dúzia de personagens centrais, entre americanos e mexicanos - que nenhum ator oferece uma atuação de destaque, repetindo um traço comum da saga. Ana de la Heguera e Tenoch Huerta possuem uma composição eficaz - especialmente ele, de expressão mínima e menos “heróica" do que a colega. Mas ninguém adquire a oportunidade de superar os arquétipos: eles se resumem a “dois mexicanos”, de “americanos brancos e liberais”, de “americanos neonazistas”. Sabemos pouco da vida dos mexicanos em seu país de origem, exceto pela curta menção à luta contra cartéis. Felizmente, trata-se de um casal sem filhos - é ótimo ter a mulher dissociada da função de mãe, e da perspectiva de ter um bebê em solo vizinho para desfrutar do “sonho americano”.

Atenção: spoilers a seguir!
Ironicamente, o nascimento de um bebê aproveitando a “política de bem-estar” alheia ocorre em chave oposta. A Fronteira vai surpreendentemente longe em sua analogia ao transformar a nação mais rica do mundo num caos completo, fazendo com que os norte-americanos ricos e brancos corram desesperados… para o México. Agora, são as fronteiras mexicanas que precisam decidir se permanecem abertas ou fechadas, e os brancos estadunidenses se convertem em imigrantes ilegais. O casal racista tem seu bebê nascido na nação vizinha, e o pai da criança termina balbuciando um “Muchas gracias” constrangido. A proposta da inversão de valores serve a ilustrar a arrogância de nações ricas com os mais pobres. A destruição progressiva da ordem é bem comandada pelo diretor, que possui um olhar empático a todos os personagens, ao passo que se posiciona de maneira claramente contrária aos supremacistas brancos. Gout apresenta limitações em cenas de luta (o confronto com motocicletas na cabana poderia ser mais eficiente em termos de enquadramento, iluminação e montagem), porém cumpre o necessário nos enfrentamentos urbanos e na representação tão desgastada do deserto. Apesar de diálogos excessivamente didáticos (“Agora esses babacas me irritaram!”, grita Adela; “A violência está se espalhando, e não está diminuindo. Então não existe lugar seguro para ir”, verbaliza Dylan), existem acenos interessantes às lideranças femininas e indígenas contra a barbárie. Além disso, o quinto filme traz a cena mais bela de toda a franquia: uma sala de cinema em pleno funcionamento enquanto bombas explodem e carros pegam fogo lá fora. Mesmo sem espectadores, num espaço físico comprometido, a sessão continua intacta, se apresentando, resistindo. As pessoas podem se destruir, mas sempre haverá a arte.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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