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Crítica


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Sinopse

Melinda e Sheila trabalham numa loja de conveniência. Enquanto a primeira é solitária e disputa a atenção dos clientes que passam, a segunda, mais bonita, dispensa os flertes recebidos. Quando um jovem assalta o local para pagar uma dívida, Melinda decide tomar o controle da situação e se aliar ao assaltante. Ela tem uma única condição para liberar o dinheiro em caixa: que ele a leve junto quando terminar o roubo. Algumas visitas inesperadas durante a noite acabam mudando os planos dos três.

Crítica

Se não trouxesse personagens tão estranhos, Uma Noite Infernal (2019) seria um suspense policial de poucos atrativos. A princípio, ele é movido por uma estrutura simples: durante uma noite, a loja de conveniência de um posto de gasolina é assaltada, colocando todos em perigo. A presença de revólveres carregados, negociações às pressas e a possibilidade de a polícia chegar a qualquer instante garantem a tensão, algo que o filme sabe aproveitar bem. O espaço reduzido intensifica o conflito, visto que os personagens não têm para onde fugir no caso de uma porta bloqueada, enquanto a transparência da fachada impede que o crime seja cometido às escondidas. Não há grandes quantias de dinheiro escondidas, assaltantes particularmente habilidosos nem policiais muito inteligentes. A premissa envolve pessoas banais, de poucos laços sociais, agindo de modo impulsivo. O fato de começar pelo desfecho, e depois retornar ao princípio para explicar como chegamos até ali tampouco constitui um recurso inventivo em termos de linguagem.

Entram em cena, no entanto, figuras extraídas de um teatro do absurdo. Melinda (Tilda Cobham-Hervey), a protagonista, constitui uma garota ao mesmo tempo ingênua e sexualizada demais. Ela articula excessivamente suas falas, ostenta um corpo retraído e os cabelos presos de modo infantil, ao mesmo tempo em que flerta com literalmente qualquer homem que passe pelo posto de gasolina onde trabalha. Em registro oposto, Sheila (Suki Waterhouse) transparece vulgaridade em cada palavra ou gesto, apesar de recusar a investida de todos os homens. As duas garotas são escritas a partir de um ponto de vista fetichista e masculino, o que poderia despertar críticas pertinentes ao trabalho de Mike Gan enquanto diretor e roteirista. No entanto, o circo de horrores se estende a todos os personagens, inclusive os masculinos. O assaltante Billy (Josh Hutcherson) não sabe muito bem se constitui uma figura agressiva ou tímida, algo que o ator demonstra dificuldade em definir. O policial Liu (Harry Shum Jr.), atrapalhado e educado em excesso, tampouco corresponde a uma figura verossímil.

O filme subverte de maneira grosseira os estereótipos para fornecer exageros inversamente proporcionais ao que se esperaria de cada personagem: agora as mulheres estupram os homens, as vítimas intimidam os assaltantes e os civis controlam uma cena do crime onde um policial está presente. Por mais interessante que soe a iniciativa, ela se revela apenas improvável, porque cortada do mundo ao redor. Se Gan oferecesse uma sociedade em que todos os laços de gênero, raça e sexualidade estivessem deslocados do realismo, talvez as interações entre Melinda e seus colegas tivesse algum sentido. Aqui, no entanto, elas se transformam na brincadeira de um diretor jovem, bastante satisfeito com suas peripécias de roteiro e com a possibilidade de fazer de os personagens interpretarem na contramão das expectativas. Uma Noite Infernal poderia assumir de fato seu lado absurdo, explorando o espaço do posto de gasolina como algo próximo do pesadelo, mas o diretor não vai tão longe, seja por falta de ambição estética, seja por limitações de produção. Ele arma um tabuleiro onde as peças podem se mover sem regras, imaginando então as interações possíveis entre elas. 90% das cenas são articuladas por duplas: Melina encontra uma nova pessoa com quem interage, antes de esta ser descartada e dar espaço a um novo parceiro cênico.

Tilda Cobham-Hervey está tão livre quanto descontrolada em cena: ela contorce os lábios, franze os olhos, aperta os dedos, deixa a boca entreaberta por um longo tempo. A protagonista caminha por uma mistura incômoda entre loucura, limitação intelectual, psicopatia e talvez algum superpoder – em diversas cenas, ela remete a Carrie, a Estranha (1976), prestes a demonstrar sua capacidade de telecinesia. A dedicação do diretor em contorcer os personagens não acompanha a estética, que permanece acadêmica até demais: Melinda está sempre centralizada no enquadramento, enquanto as conversas se alternam em planos e contraplanos banais. Cenas importantes como o estupro e o incêndio revelam-se particularmente mal filmadas – ou talvez seja melhor dizer que são escondidas pela montagem, em provável sinal de falta de recursos de produção. Os cenários em lilás, azul e verde-água garantem uma paleta de cores pop-neon ao assalto tresloucado, porém uma vez estabelecido o contexto do crime inicial, Gan não demonstra forte habilidade em desenvolver o estilo, nem a narrativa.

Enquanto isso, algumas interferências soam tão improváveis que beiram o erro de edição, a exemplo da cena cropada diversas vezes, numa espécie de zoom in efetuado em pós-produção. O diretor transparece sua inexperiência, ainda que as escolhas estranhas possuam algum interesse por si próprias. Por mais que as motivações dos personagens sejam risíveis (“Eu só queria estar com alguém”, explica a gentil estupradora), e o desenrolar da trama invista em reviravoltas inacreditáveis (principalmente envolvendo o almoxarifado e um grupo de motoqueiros), o resultado pode funcionar enquanto releitura pulp do cinema de gênero. O título original, Burn (“Queimar”, ou “Queime”, no imperativo), remete ao incêndio, à queimadura de café, à explosão da bala, e de certo modo, também à conotação sexual constante – todos os personagens se seduzem nesta trama. O filme nunca se leva a sério enquanto comentário social, resultando num exercício cinematográfico pouco pretensioso, o que talvez seja a melhor maneira de conduzir este roteiro improvável. Ele pode conter dezenas de problemas de imagem e de ponto de vista, porém não soa genérico, nem igual a tantos outros projetos sobre assaltos. Para o bem ou para o mal, Gan proporciona uma experiência singular.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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