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Noite Incerta é um filme-ensaio que mescla ficção e documentário. O dado ficcional fica por conta das cartas de uma estudante de cinema chamada apenas de L. que servem para situar o discurso amoroso dentro do pano de fundo politicamente turbulento. L. se dirige ao amado, falando do amor deles sofrendo em tempos como os nossos, e esse dispositivo funciona para construir a narração do longa-metragem de estreia da cineasta indiana Payal Kapadia. O dado documental fica por conta das imagens de protestos estudantis contrários às políticas governamentais que tornam precárias as condições de ensino num dos países mais populosos do mundo. Então, enquanto a voz monocórdica fala do amor atravessado pela atualidade, das barreiras impostas pela tradição ao vínculo emocional considerado impossível, testemunhamos a articulação juvenil a fim de oferecer respostas aos arbítrios do Estado. O que atrapalha boa parte da fruição do filme é certo marasmo que se instala nessa relação dialética entre a narração e as imagens. A voz de L. não contém variações, assim registrando com intensidades semelhantes coisas que são emocional e politicamente bastante distintas. Ela pronuncia as palavras sempre num tom entre o choroso e o saudoso, dando primazia à lamúria. Enquanto isso, somos submetidos a imagens sempre muito escuras e granuladas dos protestos dos estudantes.
Payal Kapadia evidentemente quer provocar um choque entre essa história de amor interditada e o conhecimento/saber não menos embarreirado pelas políticas retrógradas do país que ainda separa os cidadãos por castas. A produção transpira uma resignação poetizada sobre as impossibilidades. Porém, o que mais depõe contra Noite Incerta é a aposta quase radical no marasmo que se instaura em boa parte de sua duração, numa sensação de que a reflexão precisa se dar num ambiente relativamente controlado, feito de lamentações repetitivas e modelos ilustrativos. Especialmente nos dois primeiros terços da trama, essa construção em banho-maria favorece bem mais o escrutínio das imagens granuladas e majoritariamente escuras em busca de algo que as tire desse lugar de "à deriva". No entanto, a realizadora não consegue criar uma vivência intensa com esse diálogo entre amores impossíveis e aprendizados impedidos. L. narra com o mesmo tom a saudade sentida do homem amado a angústia diante das perseguições policiais e o seu crescente medo do futuro. O resultado é uma experiência próximo do enfadonho em blocos inteiros desse filme que funciona melhor num nível puramente experimental do que enquanto defensor de uma política de afetos cruzados. Falta algo que interligue os anseios do discurso amoroso e os desejos quanto à paixão pelo cinema.
No último terço de Noite Incerta as coisas ficam sensivelmente melhores, especialmente porque há um aumento considerável no volume dos enunciados políticos dessa história duplamente atravessada por impossibilidades, interdições, impedimentos e o que mais lhes servir de sinônimos. Payal Kapadia intensifica, por meio das cartas fictícias de L., o diagnóstico de uma sociedade que ainda segrega por vários motivos. Ela denuncia uma Índia que separa os estudantes universitários por condição social e casta, o que é reforçado (aí, sim) pelos flagrantes de policiais agindo brutalmente para reprimir os protestos estudantis. Nesse momento cabe até uma reflexão que alude à preocupação do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini nas revoltas secundaristas e universitárias de 1968. Pasolini foi contra a corrente da esquerda na época e escreveu sobre a impossibilidade de fazer a revolução sem a classe trabalhadora, angariando críticas de seus pares por constatar que os policiais representantes do Estado eram filhos do operariado, enquanto os estudantes vinham das famílias burguesas. L. pondera sobre isso, mas como uma maneira de garantir que o cenário indiano é complemente diferente do italiano, principalmente porque seus colegas não eram membros da burguesia. Mas, há nisso um simplismo. A tragédia não é assim excluída, pois o Estado coloca o pobre para matar o pobre.
Existe o espaço da reflexão e o da contundência no longa-metragem indiano selecionado para a mostra competitiva do 11º Olhar de Cinema de Curitiba. O da reflexão é menos interessante, na medida em que o entrelaçar dos discursos amoroso e político é feito de modo modorrento, sem que os seus fragmentos provoquem faíscas ao se atraírem ou ao se repelirem. Basicamente, somos convidados à contemplação, não tanto à mobilização. Já o da contundência surge de modo um tanto tardio, assim dificultando a ressignificação do que o precedeu. Mas, verdade seja dita, quando Payal Kapadia coloca a observação do conturbado momento político de seu país em primeiro lugar, transformando a lamúria romântica quase em nota de rodapé, o conjunto ganha vivacidade e contornos mais interessantes. Há uma cena particularmente angustiante no filme. Nela, uma câmera de segurança testemunha estudantes sendo encurralados pelos policiais que agridem gratuitamente quem estiver mais próximo. Vemos cassetetes e pedaços de pau envergando no contato brutal com os manifestantes e a tensão crescendo à medida que uma tragédia se anuncia. Faltam imagens fortes como essa para contrapor (e compor com) os registros um pouco mais cotidianos e os da luta social. Um panorama embalado pela voz que mantém o mesmo tom enquanto a cineasta tenta extrair poesia da granulação e da escuridão.
Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.
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