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Crítica


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Sinopse

Julie trabalha como passeadora de cachorros em Paris. Durante uma chuva, se abriga num café e descobre, sobre uma das mesas, uma prova de matemática e uma perturbadora carta de amor de uma aluna ao professor. Pelo teor do texto, a estudante está disposta a tomar medidas extremas. Julie começa sua investigação para prevenir uma catástrofe.

Crítica

Existe uma vertente da comédia de costumes baseada na diferença de percepções entre o protagonista e o mundo ao redor. Os heróis podem ser tipos banais inseridos num universo absurdo (caso de Adeus, Idiotas, 2021), ou podem constituir figuras malucas habitando um mundo completamente banal, caso deste longa-metragem. Os personagens principais agem de uma maneira que a maioria das pessoas civilizadas não agiria: Julie (Laetitia Dosch) entra no carro de estranhos, estapeia adolescentes, planeja a invasão da casa de desconhecidos, envia fotos dos seios a menores de idade, faz descrições de sexo explícito em voz alta com pessoas ao redor. Já Mathieu (Pierre Deladonchamps) é um professor de matemática dotado de gosto perverso pela humilhação dos jovens alunos, atribuindo várias notas zero com mensagens ameaçadoras, tendo possivelmente se relacionado com uma adolescente da turma. Os demais professores se mostram responsáveis, e os outros adultos levam vidas triviais, condicionadas às obrigações do trabalho e da família. Os únicos seres espontâneos e inconsequentes (e por isso mesmo, perigosos para si e para os outros) são os dois protagonistas desta aventura íntima. Ao descobrir uma carta de amor/suicídio entre as provas de matemática, Julie decide correr cidade afora para encontrar e salvar a garota apaixonada. As intenções são nobres; os métodos, nem tanto.

A diretora Ève Deboise insere esta premissa em gêneros e subgêneros consagrados do cinema: existe um aspecto do road movie, visto que a dupla passa horas seguidas rodando pelos bairros de Paris e da periferia à procura da menina desaparecida. No caminho, como convém aos filmes de viagem, descobrem novas características de si próprios e se abrem às diferenças. Em paralelo, aposta-se nas duplas que se detestam, sendo obrigadas a trabalhar juntas em prol de um bem comum, seguindo as regras típicas da comédia policial. O humor físico está devidamente contemplado pelo homem que cai no chão e tem as nádegas mordidas por um cachorro. Enquanto isso, o romance movido por heroínas atrapalhadas e incompatíveis com o amor (até descobrirem um homem atraente, é claro) se encaixa como uma luva em Julie, mulher alegremente irresponsável, habituada a furtar objetos de lojas e criar mentiras sem parar, pelo prazer de fazê-lo - ela não obtém qualquer benefício de sua mitomania. A exemplo das produções indie norte-americanas, estes tipos perdedores, rejeitados socialmente, encontram amparo na excentricidade alheia. Há um senso de reconforto na previsibilidade da jornada (sabemos que eles tendem a se aproximar), ainda que o caminho até o final feliz esteja repleto de surpresas.

O filme deposita a responsabilidade do ritmo e do tom nos ombros de seus atores principais. Eles cumprem a tarefa sem dificuldade, em registros opostos: Laetitia Dosch possui uma naturalidade impressionante para este tipo de interação tragicômica, seduzindo um garoto de 16 anos de idade numa festa como quem diz “bom dia”. Ela jamais se esforça para atuar, nunca exagera na voz, no olhar, na postura corporal — uma boa lição para os defensores do humor de caretas e trejeitos marcados. A atriz incorpora o texto deslocado do real com despojamento exemplar, sinal de respeito tanto por sua personagem quanto pelo público que não necessitaria de uma composição pronunciada. Já Pierre Deladonchamps ostenta uma composição clássica, técnica: é visível que ele “está atuando”, no sentido de propor grandes gestos para as cenas de raiva, modular a voz quando necessário, orquestrar com atenção as pausas e as ironias do texto. O estilo racional dele se confronta ao teor instintivo dela, produzindo belo relevo no jogo cênico e correspondendo à proposta de que sejam, de fato, incompatíveis ao primeiro olhar. O interesse da cineasta provém do desafio de conceber as figuras menos românticas possíveis, para vê-las então atraídas mutuamente, embora nunca estivessem em busca de relacionamento.

Infelizmente, Pequena Lição de Amor é prejudicado pela produção de baixíssimo orçamento, algo raro para um elenco deste porte. A captação digital decorre de uma câmera de baixa qualidade, deixando a textura pixelizada, "suja". A direção de fotografia se priva de nuances: durante as sequências diurnas, o mundo se converte num grande borrão branco, em especial na fraca cena final. Curiosamente, o diretor de fotografia encontra melhores soluções para trabalhar as baixas luzes no espaço apertado de um carro (cenário que costuma oferecer dificuldades aos criadores) do que numa praça aberta, ou nas ruas de Paris em dias nublados. A mixagem reflete as condições modestas para a captação do som direto e aposta numa trilha sonora de jazz que se esforça em tornar o conteúdo ainda mais leve e fabular, possivelmente visando ocultar estas pequenas falhas. A intromissão inesperada de uma sequência musical desperta a impressão de que a diretora hesitou quanto aos enquadramentos e à função deste trecho, enquanto cenas de sexo, surpreendentes para uma obra tão cândida, ganham tratamento de luz bastante adequado. O resultado transparece um desnível na finalização — ele teria sido realizado durante a pandemia de Covid-19, enfrentando dificuldades de concretização? 

Em suas gentis esquisitices, o longa-metragem aborda de maneira responsável alguns assuntos de relevância à França contemporânea, a exemplo dos desafios da educação, a depressão entre jovens, a pedofilia e a homossexualidade. Trata-se de uma iniciativa de ambições modestas no plano estético, porém preciosa na construção psicológica de personagens. Caso dois intérpretes diferentes assumissem os papéis centrais, o resultado seria um filme totalmente diferente. Esta é uma forma de cinema apaixonada pelos atores, do tipo que adota uma postura humilde, atenta, deixando que brilhem sem grandes intervenções. Deboise elabora alguns planos divertidos por si próprios — vide as casas fantasmáticas da cidade de Évry durante a madrugada, os outdoors repetidos de seios e bundas, as gags do cachorro desaparecido. O roteiro se consagra às pessoas banais, numa jornada que interessa apenas aos dois (nenhum deles pensa em recorrer à polícia), e cujas implicações passam despercebidas ao resto da sociedade. O espectador viaja com Julie e Mathieu na posição confortável de cúmplice, testemunhando magias do cotidiano que ninguém mais enxerga. A diretora possui talento para encontrar a beleza da banalidade, e desperta curiosidade quanto aos próximos projetos — quem sabe, com maior e melhor estrutura de produção.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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