Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
No quarto de pensão, a face assustada de Umberto Domenico Ferrari denuncia a chegada de outros tempos. A dificuldade em pagar o aluguel, a pressão pelo eminente despejo e a urgência em conseguir dinheiro não lembram em nada o passado confortável, carregado pelo protagonista no terno bem cortado, resquício da vida dedicada ao serviço público. Em meio a guerras, a crise econômica fez a Itália assumir o seu símbolo máximo, transformando-se de vez em ruína. Neste grande Coliseu em forma de bota, como vemos em Umberto D., de Vittorio De Sica, a aposentadoria não é luxo, mas eufemismo conhecido daqueles que sobrevivem lutando pelo mínimo de dignidade.
Se Ladrões de Bicicletas (1948), do mesmo De Sica, é considerado em consenso o melhor filme do neorrealismo italiano, não é difícil afirmar que, descortinada a sombra causada pelo longa realizado três anos antes, Umberto D seja a mais sincera, legítima e pura história contada pela escola cinematográfica do pós-guerra. Nos pouco mais de 90 minutos de duração, acompanhamos um personagem abandonado pelo Estado e pela sociedade. A Morte em Veneza (1971) de De Sica não trata da perda do mundo dos costumes aristocráticos, mas se debruça sobretudo no declínio de um homem frente à velhice e à pobreza.
Em momentos de crise, a empatia é a primeira a se retirar. Não à toa o roteiro do parceiro habitual Cesare Zavattini (Milagre em Milão, 1951) enfatiza a relação de Umberto com o simpático cachorro Flike. Abandonado pelos seus, o personagem encontra na lealdade do animal o sopro de vida em um afeto acessível e despretensioso. Ao explorar a inusitada amizade como contraposição à incapacidade humana de solidariedade, De Sica consegue uma das cenas mais comoventes do cinema. Ali, quando não há mais escapatória e Umberto ensaia os primeiros movimentos para pedir dinheiro na rua, Flike se oferece para ajudar, erguendo com a boca o chapéu das esmolas.
A camaradagem do cachorro está ausente nos demais, seja na dona da pensão que quer a saída de Umberto para reformar o quarto e poder cobrar mais, seja nos inúmeros conhecidos que encontra na rua, todos incapazes de lhe estender a mão. Para compor o triste trajeto de um senhor em busca de dignidade, o diretor se utiliza dos pré-requisitos básicos do neorrealismo. A realidade transborda na atuação estreante – e única – do não ator Carlo Battisti. As locações descartam estúdio, ocupando o quarto da pensão um par de vezes e, majoritariamente, as ruas da cidade, por onde perambula o personagem. Dedicado a Umberto De Sica, o homônimo sugere que os anos finais do protagonista foram inspirados justamente no pai do diretor, em uma prova de quão cru pode ser o cinema.
Diante da situação de Umberto, De Sica poderia escolher um dos lados. Se fosse ele um diretor com pés no cinema soviético, teria dado continuidade ao trabalho formal tímido do início, no qual a câmera enquadra trabalhadores e donos de fábricas de maneiras distintas. Ou, ainda, seguiria na sugestão das formigas que inundam a pensão, fazendo de Umberto D uma proposta exemplar do neorrealismo como cinema político. Mas não. Os indícios da crítica social estão bem evidentes para que se sentisse obrigado a continuar envolvendo a trama em um panfleto. Preferiu, portanto, legar para a história um filme não sobre as fraquezas da Itália, mas sobre as qualidades dos compatriotas apesar daqueles que os governam. Mesmo tomado pela inevitável melancolia de retratar um idoso envergonhado da própria condição, Umberto D é um dos filmes mais humanos já realizados, sinalizando para existência de uma beleza possível – ainda que encabulada – quando preservadas persistência, esperança e integridade.
Últimos artigos deWillian Silveira (Ver Tudo)
- Banco Imobiliário - 4 de agosto de 2020
- Tropykaos - 30 de março de 2018
- Os Golfinhos Vão Para o Leste - 24 de novembro de 2017
Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Willian Silveira | 9 |
Ailton Monteiro | 8 |
Chico Fireman | 7 |
Marcelo Müller | 10 |
MÉDIA | 8.5 |
Deixe um comentário