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Sinopse

Em uma noite de forte chuva, Kevin, o filho adolescente da governanta de Cecilia, bate à sua porta. Professora de sociologia, ela mora sozinha com o filho pequeno. Ela fica com medo, e não deixa o jovem entrar. No dia seguinte, o corpo do rapaz é encontrado em um rio.

Crítica

A premissa deste projeto é interessantíssima. Certa madrugada, quando uma mulher está dormindo em sua casa, ela escuta batidas desesperadas na porta. Chove forte lá fora, e ela reconhece pela persiana o filho da empregada doméstica, um garoto envolvido em problemas com a polícia. Amedrontada, decide não abrir. No dia seguinte, descobre que o menino foi morto. Em que medida ela seria responsável por não prestar socorro? Tinha razão de supor imediatamente que corria perigo ao recebê-lo? Um Crime em Comum (2020) demonstra forte potencial para discutir questões sociais e raciais, questionando tanto a perseguição policial aos mais pobres quanto a responsabilidade da burguesia neste cenário, além da ideia de “culpa branca” em relação às desigualdades. Não seria difícil transferir a história passada na Argentina a qualquer outro país sul-americano, incluindo o Brasil.

O diretor Francisco Márquez toma precauções para não transformar esta história numa caricatura. Primeiro, a mãe em questão está longe da figura da madame ou do indivíduo com fobia às classes populares: Cecilia (Elisa Carricajo) trabalha como professora de ciências sociais, propondo debates sobre Marx e Althusser em suas aulas. Ela faz as refeições junto da empregada doméstica Nebe (Necha Martínez), descrita pelo filme como uma amiga próxima, e quando percebe o filho dela, Kevin, sendo assediado por policiais pela primeira vez, toma partido do jovem. Curiosamente, desenha-se não apenas uma mulher distante de preconceitos, mas o ápice da figura progressista. Deste modo, a tragédia perto de sua casa representaria não apenas uma questão de ética perante Nebe, mas uma afronta aos seus princípios de esquerda. Talvez o filme tivesse tanto medo de dar brecha à interpretação de preconceito no caso de não-assistência que partiu para seu exato oposto.

No entanto, o drama começa a apresentar alguns pontos questionáveis. Primeiro, de ordem narrativa, através de uma série de conveniências pouco verossímeis: no momento em que o crime acontece, as aulas de Cecilia são suspensas abruptamente, para que ela não tenha mais nada com que se preocupar até o fim do semestre. A televisão se liga sozinha, no exato instante em que uma reportagem anuncia a descoberta do cadáver do garoto – poucas ferramentas soam mais artificiais num roteiro do que a televisão anunciando precisamente o que os personagens precisam ouvir. O filho não se encontrava em casa na noite da execução, para o filme não precisar lidar com a reação do garoto às batidas na porta. Não há testemunhas nem provas, ou seja, não há qualquer elemento jurídico para questionar Cecilia por seus atos. O conflito se resume portanto à questão pessoal da culpabilidade, e não de responsabilidade ética ou humana. Cecilia talvez devesse ter aberto a porta, mas como poderia saber a gravidade da situação? Márquez filma a noite da tempestade como uma aparição de terror, facilitando ao espectador se posicionar do lado da professora na decisão de ignorar o apelo externo.

A crise de consciência poderia carregar uma dose de ironia, talvez em comparação com outras mães, ou com o posicionamento de outras pessoas. A culpa da professora de esquerda poderia ser questionada pelo embate entre o instinto de autopreservação e a ideologia pessoal. Um Crime em Comum, entretanto, acaba por tratar Cecilia como a verdadeira vítima do caso. Quando a polícia lança uma bomba de gás lacrimogêneo durante uma manifestação, o enquadramento se fecha apenas na professora tossindo com os efeitos da fumaça, mas ignora o efeito nos demais manifestantes. Logo após descobrir a morte de Kevin, ela sequer pensa em ligar para Nebe, e o filme não se atarda sobre o sofrimento daquela família de classe desprivilegiada cujo filho foi executado. Há evidente preocupação em sublinhar o impacto daquela noite na saúde emocional de Cecilia – ela se torna ausente, dispersa, uma “mulher sem cabeça” -, mas aí encontra-se o problema: instrumentaliza-se o sofrimento dos moradores da favela para discutir o impacto sobre a mulher branca. Cecilia não se preocupa de fato com Nebe e sua família (ela age por culpa, ao invés de solidariedade), e o filme também não.

No papel principal, Elisa Carracajo traz uma composição curiosa, mistura de espanto com um leve sorriso no canto dos lábios, algo perturbador diante da cena do velório. O filme ameaça se transformar num terror (as vozes súbitas, os carrinhos de brinquedo que se ligam sozinho), porém demonstra medo em ir até o fim na psique perturbada de sua personagem. Cenas como a porta trancada certamente foram concebidas no roteiro para produzirem um efeito muito mais forte do que alcançam de fato, e a imagem final, apesar de interessante conceitualmente, soa previsível, confirmando uma vez mais que o único interesse do projeto consiste em expiar a culpa daquela mulher. Ainda mais grave é o paralelismo estabelecido entre o labirinto cheio de monstros de um parque de diversões, que os garotos frequentam na cena inicial, e o labirinto de uma favela onde Cecilia se perde. A possível conexão entre pobreza e monstruosidade torna-se condenável, mas atesta que Um Crime em Comum, com suas imagens limpas demais (enquadramentos fixos, textura impecável da nitidez digital) está mais preocupado em reestabelecer a ordem e jogar o crime para debaixo do tapete do que analisá-lo socialmente.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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