Crítica


5

Leitores


2 votos 9

Onde Assistir

Sinopse

Quais as credenciais para ser um bom policial na Cidade do México? Dois atores profissionais passam por uma imersão para explorar essa questão. Eles acabam obtendo respostas viscerais que orientam suas jornadas.

Crítica

O projeto se abre com uma ficção policial tão eficiente quanto convencional: uma dupla de oficiais recebe o chamado para intervir num caso pela cidade. A viatura se apressa, reforços são solicitados pelo rádio, os moradores estão aflitos. A imagem é tomada por flares enquanto a câmera corre para acompanhar a policial atravessando um pátio, e depois busca uma fresta pela janela para descobrir uma mulher em trabalho de parto. Diante das imagens de aparência verídica, sabemos que o realismo constitui uma prioridade para o diretor Alonso Ruizpalacios. O início se assemelha a uma produção cada vez mais comum em formato série e minissérie, especialmente dentro das plataformas de streaming – esta é uma criação Netflix. O espectador se acostuma às luzes azuladas da noite, às decisões de urgência e ao peso desta profissão exaustiva. Como não se identificar com Teresa (Mónica del Carmen), mulher que efetua o parto sozinha, sem conhecimentos para tal, em virtude da demora da ambulância? O cenário de precariedade estrutural acrescenta tensão à mistura.

Aos poucos, no entanto, a narração introduz certo estranhamento. Teresa e Montoya (Raúl Briones) narram as suas vivências em off, num estilo próximo do documental, apesar de se encontrarem dentro de uma ficção assumida, com controle de luz, múltiplas escolhas de ângulos e montagem. Eles se dirigem à câmera para conversar com o espectador: durante uma batida, relatam suas infâncias e os motivos que os levaram à corporação. O gesto se torna tão natural (porque as falas possuem a entonação e as gírias de uma conversa despojada) quanto artificial (porque os personagens quebram a quarta parede e discorrem sobre suas vidas durante conflitos graves). A câmera desliza elegantemente rumo às viaturas, gira pelas portas, aproxima-se do detalhe de objetos no carro e das balas nos revólveres. O realismo da primeira parte se transforma numa exposição didática, como se os atores estivessem posando para a câmera, aguardando a imagem chegar em seus rostos após algum contorcionismo extravagante da direção de fotografia. Enquanto isso, recitam falas decoradas, ou pelo menos escritas previamente. O retrato cru da vida policial se converte numa representação exemplar sobre a vida de dois heróis, avessa à espontaneidade.

Una Película de Policias (2021) avança então para uma nova reviravolta, a mais importante delas: a guinada rumo ao making of. Deparamo-nos com Mónica del Carmen e Raúl Briones se preparando para o papel: eles se inscrevem numa academia de polícia, praticam junto aos verdadeiros profissionais durante meses, cortam o cabelo, ensaiam em casa. Ruizpalacios interrompe sua ficção para mergulhar numa proposta radicalmente diferente, como se o filme começasse de novo. Os atores gravam em celulares caseiros suas impressões pessoais sobre a instituição, revelam os ferimentos adquiridos no treino físico e o medo durante intervenções reais. A produção se volta aos bastidores documentais daquela ficção que mal havia se desenvolvido, nem adquirido autonomia. Entenda-se: ao contrário de tantos filmes híbridos, onde se torna difícil discernir a fronteira entre os dois registros, aqui a ficção e o documentário estão claramente separados, sucedendo um ao outro. A proposta inicial aparenta ser de complementaridade: o cineasta busca no documentário um suporte para legitimar a ficção construída até então. Segundo este princípio, deveríamos enxergar a prática policial tanto pela ação emocionante dos tiros e perseguições quanto pela fragilidade dos bastidores.

Entretanto, o recurso faz com que ficção e documentário se anulem, ao invés de somar – ou pelo menos, que se oponham. A partir do desvio para a preparação dos atores, o filme jamais retorna por completo à ficção, revelando apenas trechos esporádicos de ações encenadas. A descoberta de que todas as falas provêm de uma entrevista com os verdadeiros Teresa e Montoya enfraquece ainda mais a reconstituição: para o projeto, a atuação da dupla de protagonistas representa mera amostragem, sem pretensão de resultar numa obra independente. A revelação dos policiais verdadeiros, ao final, acompanha o caminho de tantas histórias baseadas em fatos, onde o diretor estima ser necessário revelar as pessoas nas quais os personagens se basearam para confirmarmos a semelhança entre ambos. Pelo recurso ao real para justificar suas escolhas de mise en scène, Ruizpalacios revela a confiança limitada na ficção, e na capacidade do espectador em refletir por conta própria. Para o criador, a potência da história se torna menos importante do que o “jogo dos sete erros” onde comparamos as duas versões.

O posicionamento político se mostra igualmente vacilante. Por um lado, Una Película de Policías deseja revelar a corrupção dentro da polícia, as práticas de suborno e chantagem, a preparação insuficiente dos novatos antes de pegarem uma arma, além da insegurança estrutural. Por outro lado, faz questão de frisar a boa vontade de tantos policiais que desempenham a profissão honestamente, protegendo os cidadãos e correndo risco de morte em nome da paz e da ordem. O roteiro se prende aos dois personagens específicos sem questionar hierarquias, relações com poderes executivos e judiciários, questões de gênero, de salário, ou ainda evoluções históricas e sociais da polícia. A prática se atém a uma questão de caráter e boa vontade: o policial nasce bom, mas a corporação o corrompe. Alguns sucumbem à pressão e abandonam o cargo, outros fazem o que podem dentro das limitações diárias. É louvável que o cineasta não defenda nem vilanize a instituição como um todo. Em contrapartida, sua proposta de debate revela o medo de ofender quem quer se seja ao avançar teses fortes a respeito da criminalidade (os cidadãos, aliás, estão praticamente ausentes). Este “filme de policiais” tem pouco a dizer sobre o tema tão social e político. Resta a impressão de que Briones e del Carmen efetuaram um exigente laboratório para pouca coisa: afinal, seus personagens se reduzem à reconstituição protocolar de um discurso conciliatório.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *