Crítica
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Sinopse
Undine é historiadora, e trabalha dando palestras a estrangeiros sobre a formação da cidade de Berlim. Ela vive um relacionamento com Johannes, até ele trocá-la por outra mulher. Com o tempo, Undine aceita o término e se apaixona por Christoph, um mergulhador industrial. A profissão dele fascina a nova namorada, que também explora o mundo submarino. No entanto, alguns acidentes de percurso colocarão Undine, Christoph e Johannes em rota de colisão.
Crítica
Na mitologia, Undine é uma criatura das águas, sempre representada pelo gênero feminino, e dotada da capacidade de subir à terra para enganar os humanos. Na literatura alemã, ela chega a se aproveitar da fragilidade dos homens (entendidos como pessoas do sexo masculino) antes de retornar às águas. A personagem já possui diversas versões, dando origem inclusive à Pequena Sereia (1989). Agora, o diretor alemão Christian Petzold imagina a possibilidade de uma Undine contemporânea, desprovida de poderes, porém cercada de acontecimentos mágicos. Undine (Paula Beer) trabalha como uma historiadora, cercando-se de fatos e dados comprováveis, demonstrados em suas palestras a estrangeiros sobre o desenvolvimento urbano da cidade de Berlim. Ela discorre sobre o estilo dos prédios, sobre a arquitetura socialista e sobre linhas de trem, enquanto se apaixona por um homem que busca sua concretude nas águas: Christoph (Franz Rogowski), mergulhador industrial responsável pelo conserto de tubulações e grandes estruturas subaquáticas.
O diretor faz questão de opor estes dois mundos: as águas misteriosas, representantes da emoção, contra os prédios desprovidos de ambiguidade, e representantes da razão. Estes mundos se cruzam de maneira absurda e cômica, desde a cena inicial. Undine e Christoph são submersos pela água de um aquário quebrado dentro de um restaurante, e depois ele será ferido pelas ferramentas do trabalho nas profundezas. Estes dois mundos, vistos como opostos, se fundem, se trocam e se reconfiguram – vide o importante papel das pontes, piscinas e plataformas flutuantes, por exemplo. A cada apresentação de algum bairro da cidade de Berlim, filmado em longas cenas de palestras da historiadora, Petzold dedica algum momento de fascínio pelos peixes. Seria difícil imaginar de que maneira o patrimônio alemão poderia servir como contraponto a uma nova história de sereias, no entanto o cineasta encontra nestes signos uma maneira clara de opor o conhecimento ao desconhecido.
O encontro entre as duas esferas acontece por meio da morte. Nos minutos iniciais, quando Undine recebe a notícia de que o namorado deseja romper o relacionamento, ela responde: “Se você se levantar e for embora, eu terei que te matar”. A fala constitui uma brincadeira, claro, e também uma alusão à mitologia. Ao mesmo tempo, relata as diversas mortes e ressurreições que dominam a narrativa dentro da esfera mágica. Talvez este seja o elemento realmente fascinante de Undine: o fato de efetuar percursos fantásticos unicamente por meio da linguagem cinematográfica (fragmentação da temporalidade via montagem, repetição de cenas com novos significados, anulação abrupta de conflitos narrativos, introdução de um misterioso tema na trilha sonora) dentro de um mundo banalmente realista. A priori, a história da palestrante constitui um triângulo amoroso simples. No entanto, a maneira encontrada de representá-lo através de imagens oferece conflitos que contradizem uns aos outros, levando o espectador a se questionar sobre a veracidade do que está vendo.
Como um personagem declarado morto pode aparecer vivo na cena seguinte? Como uma criatura gravada em vídeo pode desaparecer logo depois? Por que um homem forte toleraria uma agressão sem revidar? O espectador é levado a se questionar não apenas os motivos, mas a veracidade da própria narrativa – em outras palavras, o pacto da suspensão da descrença e a noção de uma narrativa elaborada para nós, não apesar de nós. Talvez o filme esteja mentindo para o espectador, ou então seu prazer se encontre na possibilidade de multiplicar os caminhos ao invés de escolher apenas um deles. Se você pudesse percorrer as duas bifurcações de uma estrada ao mesmo tempo, você o faria? Petzold tem optado por esta forma de realismo fantástico em que duas possibilidades contraditórias convivem lado a lado, unidas sem senso se espetáculo, através de cortes simples na montagem. Em Trânsito (2018) trazia o mesmo senso de desorientação aplicado à Europa durante a guerra. Na época, ele imaginava: e se a ocupação acontecesse ao mesmo tempo no passado e no presente?
Esta narrativa da desorientação – ou talvez seja melhor dizer, uma narrativa que busca a onipresença e a onipotência – confronta-se a uma estética simples, naturalista. Petzold poderia sublinhar os absurdos, abraçar de vez o fabular. Entretanto, ele despreza a noção de “moral da história” e jamais deseja que seu pequeno conto se desprenda da Berlim atual. Talvez por isso ele dedique tanto tempo às datas, fatos e descrições de bairros da cidade, funcionando como âncoras que impedem o filme de mergulhar no canto da sereia. Nesta narrativa de Schrödinger, Undine sai ao mesmo tempo vitoriosa e perdedora, Christoph encontra a felicidade e a perdição, o ex-namorado Johannes reata com outra mulher e se oferece exclusivamente a Undine. Esta magia das possibilidades ocorre apenas aos olhos dos espectadores, transformados em testemunhas silenciosas das artimanhas do roteirista e contador de histórias Petzold. Para qualquer outro personagem da trama – os colegas de trabalho de Undine, os garçons do restaurante – a cidade de Berlim não possui magia alguma.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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