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Sinopse
Adolescente romeno que escreve mensagens de protesto contra o ditador Nicolae Ceausescu, Mugir Calinescu é preso, interrogado e posto à prova pela polícia secreta de seu país.
Crítica
Em 1981, na Romênia, um adolescente escreveu com giz, pelos muros escuros da cidade: “Queremos justiça e liberdade”. Ele voltou ao mesmo lugar, algumas noites depois, e adicionou frases sobre a importância de o povo romeno questionar o governo. Esta poderia ser uma pequena anedota política, no entanto, nas mãos do diretor Radu Jude, ela se transforma numa potente metáfora para toda a ditadura de Nicolae Ceausescu. Ao longo de mais de 120 minutos, Letra Maiúscula (2020) disseca detalhe a detalhe do caso, desde a descoberta das inscrições na parede (em letra maiúscula, como sugere o título) até a apreensão do jovem Mugur Calinescu e a futura perseguição do governo ao responsável pelas inscrições “inaceitáveis”, “subversivas” e “perigosas”. Ora, desde quando clamar por justiça e liberdade constitui um crime à nação, motivando uma verdadeira estratégia de guerra em busca do garoto?
O cineasta poderia narrar os fatos de maneira tradicional e linear, apostando nas ferramentas do cinema de suspense. No entanto, ele adota uma série de recursos muito mais criativos e instigantes. Primeiro, decide se ater à versão oficial dos documentos da polícia de Estado, a Securitate. Assim, deixa que as palavras dos policiais representem por si próprias o absurdo da perseguição ideológica. As inúmeras narrações em off, e mesmo diálogos entre personagens (Mugur e a mãe, Mugur e os colegas de escola) são extraídos diretamente de boletins oficiais. O excesso de pompa na escrita e a riqueza de detalhes da investigação se encarregam de transmitir a importância que o caso possuiu na época aos olhos das autoridades. Desta forma de comunicação burocrática nasce um humor essencial ao tom do projeto – Radu Jude utiliza as ferramentas da ditadura contra ela mesma, explicitando-as ao limite do ridículo. Ele não precisa colocar na boca de nenhum personagem a perseguição que sofrem: a simples leitura dos autos reflete a inaceitável perseguição que se afirmava com o orgulho de um dever cumprido.
Segundo, Letra Maiúscula retira a verossimilhança das ruas de Bucareste para situar sua ação em cenários multicoloridos, dispostos dentro de uma gigantesca estrutura circular. O filme elabora uma concepção teatral para representar, de maneira lúdica (e, mais uma vez, cômica) os ambientes da escola, a casa de Mugur e a delegacia de polícia. Cada fatia deste círculo (filmado inicialmente em plano aéreo, para fornecer ao espectador uma dimensão do todo) possui uma cor diferente e apenas um ou dois objetos destinados a representar o local. Uma gigantesca televisão desenhada ilustra a casa do adolescente, um imenso gravador disposto ao fundo encarrega-se de demonstrar a pressão da polícia. Cada local é iluminado e apagado conforme as conveniências da direção. Deste modo, o cenário apresenta-se ostensivamente enquanto tal. Nenhum personagem interpreta as pessoas reais do caso de maneira verossímil, pelo contrário, eles se encarregam de representar a visão destas pessoas pelos olhos dos burocratas, razão pela qual efetuam uma leitura “branca”, sem sentimentos, encarando a câmera diretamente. A reconstituição dos fatos utiliza todos os caminhos possíveis para se afastar dos prazeres do filme histórico.
Terceiro, cada nova leitura dos papéis da Securitate é entrecortada por dezenas de fragmentos da televisão romena dos anos 1980, incluindo programas de televisão com criancinhas sorridentes, reportagens sobre esculturas, publicidade de eletrodomésticos e telejornais. Os cortes são bruscos, interrompendo as falas dos personagens no meio de alguma palavra. Novamente, destinam-se a reforçar o aspecto artificial, violento e surreal da premissa. A noção de “propaganda” é explorada em seu duplo sentido: temos tanto o marketing de produtos quanto a persuasão ideológica, vendendo as maravilhas do governo Ceausescu e o fato de que tudo corria muito bem, obrigado, razão pela qual o garoto não teria motivos para protestar. Com este recurso inesperado e insistente, Jude nos lembra do que se passava enquanto isso, ou seja, durante os cinco anos em que Mugur Calinescu foi perseguido. Havia uma vida lá fora, uma sociedade inteira na qual o garoto se inseria. O diretor faz questão de frisar que este não foi um caso isolado, encontrando nas imagens kitsch e otimistas da televisão outra representação da “versão oficial”, tão agressiva quanto aquela dos papéis policiais.
Em sua rígida alternância entre reconstituição dos autos e imagens de arquivo, o filme pode fornecer um ritmo pesaroso ao espectador, ao longo de mais de duas horas. O diretor poderia incluir recursos para facilitar a experiência, como imagens referentes, enquadramentos distantes da simetria precisa e da linguagem administrativa. No entanto, Jude nunca fez questão de facilitar o caminho à sua estética, como atestam a direção de fotografia de Aferim! (2015) e o ritmo de Eu Não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros (2018). Ele efetua uma nova pesquisa de gêneros dentro da comédia para refletir sobre a Romênia de ontem e de hoje. Goste-se ou não, o estilo utilizado no filme de 2020 jamais deixa de chamar atenção a si próprio, a nos confrontar ao fato de que estamos diante do cinema, de uma criação, uma representação – ou ainda do falso, sublinhado ao extremo. Até por isso, o brilhante final estabelece uma ponte entre as propagandas de ontem e de hoje, entre a Securitate e a Cambridge Analytica no papel da manipulação da opinião pública. Com ajuda de imagens potentes, o filme nos lembra que as raízes da decadência política atual provêm das restrições de liberdades aplicadas a gerações anteriores.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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