Sinopse
Dividida entre os afazeres da maternidade solo e os do trabalho remunerado, Viviane precisa se desdobrar. Quando uma tragédia acontece em seu bairro, ela se vê numa espiral de desconfiança que ameaça ainda mais a sua vida.
Crítica
O latido daqueles que não tem voz. Em Ursa, a personagem-título é uma cadela pitbull que mal aparece em cena. Ela é vista uma ou duas vezes, e sempre pelo viés do seu dono, Jonas (vivido pelo músico e ator Diego Perin, em seu primeiro trabalho no cinema), rapaz que acabou de terminar um relacionamento e está em uma fase de se encontrar, de mal com tudo e todos, como se a culpa por estar nesse momento de abandono e desvio fosse dos outros, e não dele próprio. Apesar da antiga namorada ainda nutrir visíveis sentimentos por ele, o envolvimento entre os dois acabou ou, na melhor das hipóteses, se transformou. Ela se esforça em manter algum tipo de laço, a ponto de ajudá-lo em sua mudança. Mas a revolta dentro dele é grande demais, e nem a ajuda que recebe parece fazer sentido. Tanto que é somente com a partida dela que decide agir. Vai atrás de velhos amigos e parceiros, pois mesmo sem nenhuma garantia, acredita ser melhor se colocar em movimento do que seguir no aguardo por uma mudança que nunca chega. Ou até pode surgir, mas não do jeito que esperava.
Na mesma rua onde ele agora está morando, vivem Viviane (Adriana Sottomaior, premiada por esse desempenho nos festivais de Vitória e no FESTin Lisboa) e os dois filhos pequenos. O pai das crianças, que era policial, morreu em uma ação de trabalho, e a mãe não recebe apoio de ninguém, seja dos avós ou mesmo de algum outro parente. Então, quando precisa sair para trabalhar, é com uma vizinha, não mais do que uma adolescente, que conta para fazer as vezes de babá. A garota até pode entender a responsabilidade assumida – olhar, cuidar, atender e responder por dois meninos menores de dez anos – mas com tanto em sua cabeça – namorados, amigas, fofocas, novidades – e o mundo ao alcance de um digitar no seu smartphone (que, por mais simples que seja, está conectado na internet e, portanto, capaz de rodar o planeta em instantes), qual será o grau de atenção que, enfim, dará aos dois sob seus cuidados? Nos dias de hoje, é mais fácil estar a par do que está acontecendo a milhares de quilômetros do que saber o que se passa no terreno ao lado de sua própria casa.
Tanto Jonas quanto Viviane possuem muito com o que lidar. Ele quer voltar a ser ativo, recuperar uma independência que acredita perdida e se mostrar válido diante dos olhos daqueles que lhe desacreditaram. Ela, por sua vez, procura passar seus dias sem muito esforço, fazendo o mínimo para não ser despedida da lanchonete de beira de estrada onde arrumou serviço, garantindo a sobrevivência dos pequenos, com quem lida no limite entre a falta de paciência e a esperança de que algo melhor lhe aconteça no futuro. Sabe não ser capaz de lhes dar tudo o que gostaria, e portanto, ao invés de se preocupar com sonhos que acredita serem inalcançáveis, vai levando um dia após o outro, provendo o mínimo para simplesmente seguir. Quando, enfim, a tragédia se anuncia, um passa a se ver ligado ao outro. Garotos de rua, que não entendem ameaças e proibições, são capazes de tudo em busca de uma bola perdida, um desafio proposto, uma fruta do vizinho. Assim, se colocam diante de Ursa, a cachorra. Que por mais domesticada que seja, não deixa de ser um animal. E como tal, irá reagir ao se ver ameaçada por estranho no espaço que entende como seu.
William de Oliveira, realizador com premiada carreira em curtas-metragens, dá seu primeiro passo no formato longa com um filme enxuto e objetivo, preocupado mais em traçar um cenário do que em, simplesmente, narrar uma história. Cada personagem que agrega ao contexto vai, lentamente, ganhando forma e motivações, em especial seus dois protagonistas. De maneira sutil, desprovido de didatismo ou explicações desnecessárias, muito se depreende pela formação imagética que reúne e pelo pouco que é dito, bastando para tanto exercer atenção aos detalhes, às interações e às consequências de seus atos. Teria Jonas deixado o portão aberto? Seria Viviane imprudente ao confiar seus filhos a uma menina não muito mais velha do que os dois? E o cão, como condená-lo por ser exatamente o que dele se espera? Em meio a uma busca de muitos culpados, o que chama atenção é o fato de serem todos vítimas, das crianças aos adultos, dos diretamente envolvidos até mesmo aos que por ali passaram e acabaram se inteirando dos fatos, dando vazão a uma onda de insatisfações e angústias que somente as vidas que perambulam pelos subúrbios das grandes cidades são capazes de acumular. O muito a ser ressarcido não se restringe apenas a uma lógica simplista de pecado e pecador: os males são maiores, e mais antigos.
Ao optar por ter como título uma quase não-presença – sabiamente, em nenhum momento se vê o ataque, confiando ao espectador a tarefa de juntar o desamparo e ignorância de um lado com os efeitos e a selvageria de outro – Oliveira potencializa a força que Ursa se esforça em almejar, usando sua narrativa não como o esmiuçar de fatos, mas partindo dela a sólida construção de um discurso de múltiplas camadas e leituras. A mãe desesperada pelos corredores do hospital, o serviço social que mais acusa do que ampara, o guardião que não entende como a docilidade de sua última companheira pode ter partido em um ato de fúria, a injustiça que resulta como fruto de julgamentos apressados e discussões acaloradas, nos quais os vereditos são emitidos antes mesmo de qualquer tentativa de defesa: são muitos lados para uma só verdade. A violência se fez. Se foi um caso isolado ou a soma de uma série de agressões, bom, é esse o cerne da discussão. Algo que está mais no entendimento da audiência do que numa entrega fácil proporcionada pelo cineasta e sua obra, ciente de sua missão de fazer perguntas, e não de fornecer respostas simplistas.
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