float(19) float(4) float(4.8)

Crítica


4

Leitores


4 votos 9.6

Onde Assistir

Sinopse

O mundo espiritual é invisível aos olhos físicos.  Entretanto, esse invisível não o é à sensibilidade espiritual de Luiz.

Crítica

A fé prescinde de comprovação. Diferentemente de São Tomé no início, que precisava ver para crer, boa parte das pessoas adeptas às divindades, orixás, santos e afins não sente a necessidade de enxergar literalmente essas entidades para consagrar-lhes preces e agradecimentos. Em Urubá temos o protagonismo de Luiz Gonzaga de Melo, mais conhecido comunitariamente como Luiz de Yemanjá, homem que está sofrendo de um glaucoma severo capaz de lhe deixar cego num futuro próximo. O cineasta Rodrigo Sena não faz de seu filme um percurso de compreensão dessa natureza devota que renuncia à validação, à visibilidade de elementos vitais. Em dado instante, alguém fala que o sujeito tem um problema, sendo assim preciso investigar a origem do mesmo – se puramente físico, espiritual ou fruto de um trabalho feito para lhe prejudicar. O filme permanece no universo das religiões de matriz africana, evidentemente lançando a ele um olhar reverente, mas não demonstrando com clareza o objetivo a ser alcançado nos seus pouco menos de 15 minutos.

Em certos instantes, Luiz de Yemanjá parece uma desculpa para ganharmos acesso aos terreiros, às cantorias e aos diálogos de pais e mães de santo com os orixás. Já em outros, essa aparente ordem se inverte, com a religiosidade desenvolvida em torno do enfermo como maneira de lhe conferir contornos de personalidade mais evidentes. Rodrigo deixa passar algumas boas oportunidades para sinalizar engrenagens periféricas essenciais, como a iconografia das doutrinas de matriz africana. Ele até chega a oferecer vislumbres rápidos de estátuas, guias e outros elementos caros àquele entorno marcado por um profundo respeito pela ancestralidade. Entretanto, não há uma afirmação dessa conjuntura para além da ilustração. Nem quando ao fundo aparece um boneco do Mickey Mouse o cineasta aproveita a deixa para sublinhar a predileção pelos ícones. Assim, temos pouco do credo e apenas o suficiente de Luiz para compreender a sua busca imediata.

Urubá tem como principal mérito o olhar respeitoso aos cerimoniais de pretenso acesso à espiritualidade. A câmera transita com elegância pelos terreiros, centralizando Luiz, mas mantendo interesse nas bordas, nas figuras que o circundam. Em dado momento, o protagonista fala que não teme a perda definitiva da visão, mas o realizador utiliza tal sentença, ao mesmo tempo resignada e tranquila, como um dado qualquer, sem expandi-lo, por exemplo, como indício da perspectiva menos atrelada ao cartesianismo da realidade concreta. Em outra parte do curta-metragem, o homem que carrega no apelido a orixá das águas salgadas, considerada a mãe de todos, desata a mencionar episódios familiares de cegueira, desenhando sua sina como algo praticamente definido pela hereditariedade. Novamente, Rodrigo perde a passada ao não aludir dubiamente a essa noção de histórico médico com uma herança espiritual, logo permanecendo no terreno da informação.

No fim das contas, Urubá tem abertura insuficiente para Luiz de Iemanjá falar de si – o resultado é dele apenas conhecermos a fé –, nem por isso abrindo-se ao candomblé como manifestação capaz de aplacar as misérias do corpo e da alma. É como se o realizador levasse os 15 minutos para preparar o terreno, articulando vislumbres do protagonista e da religião que lhe sustenta, sem construir subtextos suficientemente potentes e/ou camadas de apreciação para além do que a imagem apresenta. Num filme que tem como essência o diálogo com a imaterialidade, com aquilo não necessariamente determinado pelos olhos, é de se lamentar a submissão da câmera à sua capacidade mais imediata de testemunhar diretamente. Há pouco explorado para além de deambulações de Luiz pelos terreiros, o colóquio com o pai de santo e a amostra como rodante, ou seja, aquele que compactua em ser possuído por uma entidade tendo em vista ser veículo de um bem maior.

 

Filme assistido online no 14º Cine Esquema Novo, em abril de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *