Crítica
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Crítica
Vivemos numa era de desinformação. Dados e notícias são cada vez mais influentes nos rumos das nações, mas a verdade não é preservada como deveria, aliás, não apenas a legitimidade do que se diz (ou se compartilha via whatsapp e redes sociais), como também o entendimento do que está por trás dos enunciados, de certas repetições e ênfases. Por que o discurso sobre corrupção na Petrobrás, por exemplo, era tão incessante na mídia brasileira até o golpe de estado desferido contra a então presidente Dilma Rousseff e essa pauta praticamente sumiu dos jornais depois da ascensão de Michel Temer à presidência? A corrupção foi extirpada como num passe de mágica ou não fazia mais sentido apontar um problema que pudesse desestabilizar a nova governança? Vivemos num mundo complexo e não raro o discutimos de modo simplório. Por isso chega a ser um emplastro antioxidante a oportunidade que o cineasta João Amorim nos prescreve com Utopia Tropical. O documentário traz como protagonistas, ora palestrantes, ora dialogantes, o linguista e ativista político norte-americano Noam Chomsky e o diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro Celso Amorim (pai do diretor). Do alto de suas leituras dos cenários internacionais, ambos tracejam um panorama interessante sobre tópicos como as estratégias imperialistas utilizadas nos séculos 20 e 21 para subjugar as nações e as percepções.
Formalmente falando, ou seja, sob a análise estritamente da gramática documental de Utopia Tropical, a iniciativa de João Amorim está mais para conservadora/pragmática. Sem propor alternativas inventivas à linguagem do cinema apropriado pelo jornalismo, o realizador se atém à consistência das conversas cruzadas entre os pensadores com formações e perspectivas distintas (mas convergentes em vários pontos). João não está disposto a alimentar qualquer dissenso entre os protagonistas, mas a utilizar suas retóricas para oferecer uma leitura específica do mundo em que vivemos nos últimos 150 anos. Noam Chomsky é um homem de fala crítica às políticas norte-americanas, sobretudo as de sufocamento das autonomias nacionais. Em suas manifestações, ele passa por assuntos como o financiamento estadunidense aos golpes militares em curso na América Latina entre os anos 1950 e 1980, também apontando para outros momentos em que seu país natal teve uma postura geopolítica tirânica. Já Celso Amorim, latino-americano igualmente dono de opiniões firmes, evidentemente sustentadas por um misto de experiência, estudo e visão arguta da realidade, oferece a perspectiva do intelectual forjado num país de economia subdesenvolvida, cuja visão é a do povo historicamente explorado. Ele ajuda a inserir o Brasil nesse mapa globalizado de um imperialismo encabeçado pelos Estados Unidos.
Pelo modelo documental escolhido, Utopia Tropical tem as suas limitações. Embora nunca deixe as explanações individuais e as conversas dos protagonistas caírem na banalidade ou numa repetição improdutiva, João Amorim precisa de dispositivos alternativos às imagens de Noam Chomsky e Celso Amorim para evitar um total maramos visual. Para isso, utiliza animações que funcionam como ilustrações daquilo que os notáveis intelectuais estão falando. Quanto a uma síntese do passado de explorações e vilipêndios a que foram submetidos os povos na mira do eixo expansionista dos Estados Unidos, Chomsky e Amorim são figuras perfeitamente adequadas, pelo conhecimento e pela experiência adquiridos, por serem atentos ao curso histórico que nem sempre era apresentado à maioria. Portanto, estavam antenados àquilo que os poderosos não querem visível a olho nu. Repetindo algo citado no primeiro parágrafo desse texto, é um bálsamo à nossa percepção tão minada por desinformação ter manifestações desses sujeitos que pensam o mundo fora do circuito de agendamento mais óbvio. No entanto, especialmente no momento do documentário em que os dois projetam o futuro, parece ser um tanto anacrônico que lideranças intelectuais negras, indígenas e femininas sejam apenas citadas como referências enquanto se mantém o discurso proferido por brilhantes intelectuais brancos.
Claro que Utopia Tropical não se propõe a absolutismos ou mesmo ao oferecimento de modelos inequívocos de desenvolvimento global. Trata-se de uma conversa tripartida entre Noam Chomsky, Celso Amorim e o público (claro, mediada pela percepção da segura direção). Inserir representantes de uma diversidade intelectual modificaria o filme completamente e não é atribuição do crítico legislar sobre o que o documentário deveria ou não ser. No entanto, soa como atitude ligeiramente anacrônica a escolha de dois representantes de setores privilegiados da sociedade para projetar um futuro que os estratos progressistas pensam descentralizados do modelo masculino e branco de produção de sentidos. Feita essa ressalva, João Amorim abraça esse anacronismo por querer dar voz a esses sujeitos que evidentemente admira, o que não configura qualquer demérito. Voltando àquilo que o filme nos apresenta factualmente, temos dois homens altamente esclarecidos sobre coisas como política internacional, História, meios de dominação, subterfúgios econômicos, discurso midiático, entre outras faculdades. Eles ponderam acerca do presente, mas tendo o passado enquanto guia de leitura e o futuro como preocupação. É um bate-papo agradável, uma exposição de ideias interessante, mas que aponta a cenários alarmantes. Tudo num documentário que abraça sua vocação jornalística com afinco.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
Rodrigo de Oliveira | 8 |
MÉDIA | 7 |
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