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Sinopse

Kelson usa com frequência a sua moto para escapar da polícia, bem como para conquistar a mulher amada. Mas, ele precisa de uma moto mais potente e acaba comprando, sem saber, a roubada de um dos chefões do crime local.

Crítica

Não é a primeira vez que Jorge Furtado dirige um filme protagonizado por um jovem negro da classe trabalhadora levado ao caminho da contravenção por falta de melhores alternativas. Antes, ele havia comandado o ótimo O Homem que Copiava (2003), cuja história mostrava Lázaro Ramos interpretando um rapaz que encontrava na falsificação de dinheiro uma forma de sair da pindaíba. Mas, infelizmente, as semelhanças com Vai Dar Nada acabam por aí. Nesse novo longa-metragem, Furtado e sua co-diretora Ana Luiza Azevedo apresentam a história de Kelson (Cauê Campos), ladrão de veículos e morador da periferia desde o começo da trama. Assim, não testemunhamos a sua entrada na ilegalidade e, portanto, não há ênfase no dilema. Ele é um malandro que sempre dá o seu jeito de se safar, principalmente ao terceirizar as suas responsabilidades. Dentro da tradição do cinema brasileiro, Kelson pode ser associado aos heróis das Chanchadas e das produções dos Trapalhões, pois semelhante a eles em, ao menos, um ponto fundamental: não deseja subverter as engrenagens que o oprimem, sendo quem sobrevive apesar delas. No entanto, o roteiro assinado por Furtado em parceria com Guel Arraes não dá importância à malandragem como estratégia de vida, algo que parece fundamental. Kelson é engolido por coadjuvantes em situações carentes de consistência.

Vai Dar Nada mostra Kelson apaixonado pela vizinha que faz jogo duro; o chefe salafrário casado com a policial não menos trambiqueira; a irmã aspirante a advogada que trabalha com a patroa por ela caidinha; sem contar o amigo taxista e o bandido com nome de telhado, ambos que surgem muito esporadicamente. Um dos grandes problemas do filme é esse excesso de gente e subtramas em torno de Kelson, ao ponto de ele sumir da nossa vista às vezes. Dentro disso, nada parece importante, pois as demandas de uns sucumbem logo à apresentação das demandas dos outros. Mera substituição sem tonalidades. Assim, nem bem alguém viveu uma situação problemática, vem outra pessoa e propõe novos conflitos. Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo ampliam gradativamente esse painel de personalidades curiosas, acumulando circunstâncias que poderiam tornar o enredo ainda mais caótico e sintomático. Mas, infelizmente, não é isso o que acontece. O humor utilizado é mais superficial e menos corrosivo do que o fundamental às intenções de O Homem que Copiava. As implicações dramáticas são bastante rasas, os empecilhos amadurecem pouco e são rapidamente superados. Nem as cirandas amorosas duram o suficiente para marcar. Tudo é vago, raso e inofensivo.

Por exemplo, Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo não conseguem equilibrar o histrionismo de Rafael Infante com a malemolência de Cauê Campos. Fernando (Infante) é um golpista de marca maior, mas exagerado ao ponto de ficar difícil acreditar que alguém poderia confiar nele para qualquer coisa. Nesse sentido, é preciso suspender a descrença para “comprar” a sedução de Rebeca (Jéssica Barbosa). Como ela cai num papo tão escancaradamente furado? Mesmo que estejamos no terreno da comédia, é essencial que os personagens sejam construídos dentro de parâmetros que levem em consideração coerência e/ou incoerência. E ambas são reconhecíveis a partir dos traços de personalidade. Rebeca é vista frequentemente dando bronca no irmão assaltante, cobrando dele posturas corretas, estudando para se tornar advogada, mas não pensa duas vezes antes de se jogar no colo do sujeito mais sujo do que pau de galinheiro. E ela sabe com quem está lidando. Kelson é soterrado em meio a flertes, trocas de parceiros, ameaças de morte, policiais incompetentes e advogadas que agem mais com o coração do que com a legislação. O resultado é: nem bem temos um protagonista interessante e tampouco uma imagem suficientemente instigante dessa comunidade de excêntricos. Não há muita graça nas passagens cômicas e nem os subtextos têm relevância para sobressair.

O resultado de Vai Dar Nada é uma decepção, especialmente se levada em conta a envergadura dos nomes envolvidos. Como pode um filme escrito por Guel Arraes e Jorge Furtado, dirigido pelo segundo em parceria com a não menos talentosa Ana Luiza Azevedo, ser tão frágil e genérico, estética e narrativamente falando? Mesmo quando se aproxima da linguagem televisiva, Furtado geralmente imprime algo que torna suas produções cinematográficas instigantes – se é que ainda faz sentido estabelecer fronteiras tão demarcadas entre TV e cinema. No entanto, por aqui, ele e sua companheira de função permitem que o excesso de personagens e subtramas resulte em superficialidade. Nada ganha relevo porque tudo é apresentado e desenvolvido de modo acelerado, já que é preciso abrir espaço a outras dinâmicas. Sinal dos tempos pautados por audiências massivas que não se dão muito bem com pausas e afins? Mas, nem isso pode ser qualificado como motivo, afinal de contas, Furtado sabe trabalhar muito bem a velocidade em desabalada carreira ao seu favor, como vemos na intensidade da obra-prima Ilha das Flores (1989). Portanto, a decepção anteriormente mencionada surge da constatação de que nem mesmo os traços autorais da dupla de cineastas, presentes até nos seus projetos anteriores voltados para a telinha, aqui são perceptíveis. O resultado é uma comédia ligeira, repleta de personagens que não ganham espaço para elaborar seus carismas, suas crises e demais potenciais.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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