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Crítica


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Sinopse

Menina trans de 17 anos, Valentina se muda para uma pequena cidade mineira na companhia de sua mãe. Tentando não ficar à mercê de constrangimentos, ela busca se matricular com seu novo nome.

Crítica

Por quê a liberdade de um pode incomodar tanto o outro? Num mundo onde as minorias cada vez mais se esforçam para conquistar o espaço que lhes pertence por direito, por qual razão aqueles que por tanto tempo centralizaram as atenções seguem se incomodando não por perderem o que lhes compete, mas apenas por se verem obrigados a ceder aquilo que nunca lhes foi digno? A busca por uma identidade pode não ser uma jornada fácil, e enquanto os mesmos que já foram atacados seguem esperando por uma oportunidade de revidar, aqueles que se esforçam para seguir respirando procuram desesperadamente pelas forças que não apenas os manterão vivos, mas também irão servir de impulso e exemplo para os demais em igual ou semelhante situação. Valentina, longa de estreia do diretor e roteirista Cassio Pereira dos Santos, é sobre tudo isso, e, felizmente, muito mais.

Mesmo os prazeres mais simples, como a ida a uma festa vespertina com as amigas ou frequentar uma sala de aula, algo que todo jovem como ela faz com bastante naturalidade, representa um esforço muitas vezes além da sua própria capacidade para Valentina. A menina que dá título ao filme, interpretada com afinco pela revelação Thiessa Woinbackk, pode até ser vista como espelho das experiências pessoais de sua intérprete, mas obviamente uma é produto da ficção, enquanto que a outra está, em frente às câmeras, desenvolvendo um competente trabalho de composição e mergulho numa realidade que, por mais que possa lhe ser próxima, parte antes da mente e ideias do realizador. Se a atriz convence, portanto, é por seu mérito e entrega, que vão além de qualquer similaridade ou paralelismo. Pois a forma como desenha a personagem que tem em mãos é tão rica quanto profunda, denotando impressionante comprometimento com a criação que tinha pela frente.

Valentina está de mudança. A mãe conseguiu um novo emprego, e são apenas as duas no mundo. Da cidade grande, chegam em um pequeno vilarejo do interior. Tudo o que a menina quer é passar desapercebida. É curioso, pois se na vida adulta o indivíduo precisa se destacar para, enfim, vencer, na adolescência o que muitos buscam é a invisibilidade, a união, o desaparecer entre um mar de iguais. Mas Valentina não age assim por falta de personalidade. Muito pelo contrário, aliás. É que sabe bem o preço a ser pago quando alguém é diferente diante de tantos comuns. É preciso ter voz, cabeça erguida e segurança de cada passo. Talvez mais do que qualquer outro colega da sua idade, sabe bem dessa verdade, pois só chegou até ali, e se tornou quem é, por manter isso claro em mente. Mas uma hora a pessoa cansa de tanta luta. Quer descansar, sorrir, ser como os outros. Porém, é melhor não mexer com quem já foi ferido.

Como diz em certo momento da trama, Valentina “não nasceu menina”. Mais do que isso não é necessário. Quem não havia percebido, agora sabe. O que desconfiava, enfim tem certeza. Mas, no âmbito geral, o que muda? Muito pouco, provavelmente nada. Continuará sendo necessário estudar para cada prova, chegar na escola antes do sinal bater, ser fiel aos amigos e ajudar a mãe quando essa precisar. Entre tantos dias idênticos, no entanto, um pequeno detalhe pode transformar tudo. Quando uma violência é cometida, voltar para o lugar de antes não será mais possível. Agora, é baixar a cabeça e voltar a se esconder, ou manter o olhar erguido e enfrentar as consequências. Lutar pelo que é seu, aquilo que os agressores tanto se esforçam para lhe tirar. Quem ceder uma vez, nunca mais conseguirá retornar. Por isso, tão importante é seguir em frente.

Se o quase simultâneo Alice Júnior (2019) soava quase como uma fábula, Valentina parte de uma estrutura bastante próxima, mas se desenvolve como o outro lado dessa mesma moeda. O melhor amigo gay, a garota solitária que se tornará sua fiel companheira, o que provoca o bullying – e por isso pagará o preço devido – e a união que, enfim, provocará as mudanças necessárias. Se um filme vai atrás do riso e da leveza, no outro estará a dura realidade e a dor que essa é capaz de impor. Ambos, no entanto, assertivos em seus discursos e precisos em suas abordagens. Cássio Pereira dos Santos havia abordado figuras que costumam ser excluídas com igual delicadeza e objetividade em seus curtas do início de sua filmografia. Ao partir para o formato mais extenso, demonstra maturidade nesse passo, entregando uma obra adulta, ciente das suas responsabilidades, que emociona sem ser piegas, e ensina sem ser didática. Um resultado que muitos almejam, mas são poucos os que alcançam.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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