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Crítica


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Sinopse

Os planos de levar uma famosa peça de teatro aos cinemas são interrompidos depois do assassinado de um célebre cineasta de Hollywood. Nesse contexto, os trabalhos ficam por conta de um investigador veterano e de uma novata.

Crítica

Pode uma homenagem começar atacando veementemente o seu homenageado? Sem dúvida. É exatamente o que acontece em Veja Como Eles Correm. O filme é ambientado na Inglaterra dos anos 1950 durante a temporada de sucesso da peça A Ratoeira, escrita pela icônica Agatha Christie. Quem nos introduz nesse mundo pouco afeito ao realismo é Leo Kopernick (Adrien Brody), diretor norte-americano contratado para adaptar a celebrada peça aos cinemas, uma iniciativa aguardada ansiosamente por produtores ambiciosos. E o seu gesto inaugural é afirmar que ninguém aguenta mais os clichês dos whodunits, ou seja, dos “quem fez?” ou “quem matou?”, recurso narrativo famoso e popularmente festejado pelos escritos de Agatha Christie. Há, portanto, uma ironia predominante desde os primeiros instantes. E essa ironia é filhote da autoconsciência, uma vez que os numerosos lugares-comuns atacados por Leo são devidamente reutilizados pelo cineasta Tom George na condução dessa história com sabor e aroma de metalinguagem. É bem verdade que esse gesto de alfinetar os clichês e imediatamente depois utiliza-los na cara dura poderia ser mais propositivo. No entanto, sua natureza menos enfática tem a ver com o tom leve dessa comédia que está mais para zombeteira do que necessariamente para crítica ou mesmo veemente. O resultado é divertido e às vezes chega a ser surpreendente.

Em determinado instante, alguém diz serem grosseiros os flashbacks, pois eles quebram o ritmo do filme. E o que o cineasta Tom George faz logo depois? Lança mão de uma dessas voltas ao passado para melhor contextualizar o espectador. Nesses momentos de “teimosia”, por assim dizer, o realizador coloca à prova os recursos narrativos do whodunits, assim propondo um caminho criativamente fértil e instigante. Sim, pois os personagens (quase todos provenientes de arquétipos desse tipo de produção) revelam antecipadamente o que vai acontecer na trama principal, inclusive escancarando numa cena específica como a história será encerrada. E, mesmo com essa calculada antecipação de elementos e caminhos, o filme consegue apresentar determinadas surpresas e preservar a atenção do espectador. O que o realizador quer provar com isso, no fim das contas? Que os tais whodunits continuam sendo uma forma poderosa de contar enredos policiais (mas não apenas eles) e que a ausência de originalidade, atributo frequentemente utilizado em críticas preguiçosas para desabonar produções criadas sobre modelos consagrados, não é assim tão determinante para o engajamento da plateia. É como se ele afirmasse: por mais habituados com o filão, vocês ainda podem ser ludibriados, inclusive porque assistem a histórias de detetive justamente com a intenção prévia de serem ludibriados.

Um dos principais charmes de Veja Como Eles Correm é o desempenho do elenco recheado de nomes conhecidos. Para começar, há o cineasta deliciosamente insuportável de Adrien Brody, o protótipo do artista pedante oposto às abordagens populares, mas que apresenta ideias estapafúrdias, pouco sofisticadas e não condizentes com a sua fleuma. Sam Rockwell e Saoirse Ronan estão impagáveis como a típica dupla de investigadores que têm características quase opostas e que, por isso mesmo, são complementares. Ele é o detetive sem o brilho no olhar, desmotivado pelos anos de serviço e que carrega no corpo um estilhaço físico da Segunda Guerra Mundial. Para brincar ainda mais como essa característica clássica dos homens da lei do whodunits (muitos deles derivados da tradição do cinema noir), o diretor nos mostra ele fabricando artesanalmente quebra-cabeças. Quer algo mais aleatório, pálido e potencialmente entediante do que isso? Já a sua parceira é a igualmente típica policial entusiasmada, alguém evidentemente muito motivada para fazer aquele trabalho. Com um ar inocente e doce, ela anota tudinho e pergunta com a mesma frequência das suas deduções precipitadas. Como dito antes, são personagens complementares e que acentuam a lógica da homenagem ao filão. Há também os diversos suspeitos, as várias motivações, os desvios de rota e um cenário indicativo.

Veja Como Eles Correm é colorido, estilizado e repleto de momentos divertidos. Saoirse Ronan preenche a telona com a sua policial adorável, enquanto Sam Rockwell demonstra uma generosidade cênica louvável ao servir de escada à colega em inúmeros instantes. Em torno deles, uma fauna rapidamente identificável dos whodunits, incluindo o escritor afetadíssimo interpretado por David Oyelowo e o citado representante de certa classe artística um tanto medíocre, mas com sintomas e manias de grandeza. No entanto, Tom George não insere os personagens na intriga para criticar os seus comportamentos individuais, mas a fim de embasar a sua celebração do filão contra o qual Leo vocifera veementemente no começo da história. O roteiro assinado por Mark Chappell é construído a partir de um profundo conhecimento do cânone dos whodunits. Já a condução de Tom George se vale de estratégias interessantes, como brincar com a ideia de realidade e encenação ao mostrar a vítima tentando se defender de seu agressor misterioso com objetos cênicos. Feitos para ser “de mentirinha”, vasos e outros apetrechos não ajudam alguém em apuros na vida real. Soma-se a isso a própria história dentro da história e temos um filme cuja experiência se dá entre camadas narrativas interligadas. E, mesmo nos dizendo “sim, estou reproduzindo clichês”, o cineasta guarda boas cartas na manga.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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