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Sinopse

Gringa sonha em reencontrar o único homem que amou. Dona de um bordel no interior do Brasil, mesmo cega e doente, insiste em realizar seu último desejo: ir até Veneza para pedir perdão ao amante que abandonou décadas atrás. Para levá-la à cidade italiana, Tonho, Rita e as outras moças que trabalham com ela idealizam um plano com a ajuda de uma trupe circense.

Crítica

Gringa (Carmen Maura) sonha em ir a Veneza. Este constitui não apenas o conflito principal do filme, mas também o único dilema da personagem. Cega e com princípio de demência, a prostituta idosa quer visitar a terra do único homem que amou. É curioso que o apego da personagem esteja vinculado à cidade italiana, ao invés do ex-namorado. Esta mulher nunca pede que os amigos procurem por Giacomo (Magno Bandarz) para saber se está vivo, se ainda pensa na Gringa, se permanece na cidade. A senhora idosa deseja apenas conhecer a Itália onde, um dia, pretendia se mudar com ele. Percebe-se pela premissa a estrutura de conto de fadas, transformado na busca pelo príncipe encantado num reino distante. O fato de a princesa ser uma prostituta aposentada importa pouco: dentro do bordel representado pelo diretor Miguel Falabella, as trabalhadoras do sexo carregam generosa dose de ingenuidade e pureza, também confundidas com ignorância. Rita (Dira Paes) chora com os dramas singelos encenados no circo; Madalena (Carol Castro) sonha em conhecer o mundo através de um atlas, e mesmo a amarga Jerusa (Danielle Winits), quando agredida por um homem, fica emburrada e pede desculpas ao agressor.

O projeto se desenvolve num cenário de magias. O local de trabalho das mulheres carrega uma aparência de cenário teatral, com luzes fortes de refletores, poucos sons ambientes, circulação limitada de pessoas. Elas se encantam com uma jukebox iluminada, enxergando no objeto um brinquedo novo. No entanto, o elemento serve pouco à trama. Embora vivam numa época contemporânea, com Internet à disposição, a única diversão destas mulheres adultas se encontra no circo, onde gargalham diante dos palhaços e acrobatas. O retrato do sexo se converte em brincadeira pueril, mero faz de conta: Madalena se diverte em fantasiar o cliente jovem com roupas femininas; Rita interrompe um atendimento enquanto é penetrada, pedindo à amiga para terminar o serviço; Jerusa efetua uma representação cômica e assumidamente artificial do sexo oral. O autor deixa claro ao espectador que nada daquilo é real – sejam os cenários, os personagens, ou ainda a ilusão de Gringa com uma Veneza mítica. Estes personagens circenses ocupam uma rotina de ilusões, de cores neon e amizades infantis. Problemas com dinheiro, com namorados ou familiares, são deixados em segundo plano no caso das personagens principais. Se não possuem condições de partir à Europa, tampouco sofrem qualquer restrição dentro do confortável casarão onde vivem.

Em paralelo, a sociedade ao redor inexiste: vive-se dentro da zona ou do circo, espaços de realismo fantástico. Os poucos clientes vêm até a casa, porém a câmera evita visitar a vida fora destes espaços. O aspecto de farsa lúdica se transmite com clareza através dos diálogos. O texto reforça a troca de informações entre personagens plenamente cientes dos temas abordados, no intuito de trazer explicações ao espectador – o famoso “eu sei, você também sabe”. Quando um homem entra no bordel, Tonho (Eduardo Moscovis) avisa Rita: “Esse cliente é fiel. Toda semana está aqui”, algo de que a gerente do local tem plena consciência. “Coitada. Faz tempo que espera por essa viagem”, lamenta a cozinheira, após literalmente uma dezena de cenas em que Gringa reclama o direito de ir à Europa. “Aqui ninguém tem família”, dispara Tonho às prostitutas, corrigindo-se, um minuto depois: “Vocês são a minha família”. “Vocês já conhecem as regras da casa”, afirma a matrona de um prostíbulo, explicando a seguir as regras da casa às funcionárias – e ao espectador. O tom benevolente se traduz em conformismo: as personagens são agredidas sem se importarem; nenhuma delas concretiza a ambição de fuga. O único personagem assumidamente LGBT sofre o destino mais trágico, sem qualquer forma de justiça ou reparação simbólica, mas o roteiro acredita que o término seja positivo. A vida é assim mesmo, sugere o autor.

Veneza (2019) atinge seu melhor momento na alternativa simbólica de aventura oferecida à Gringa. O roteiro inteiro prepara o espectador a este clímax, oferecendo sucessivas menções à partida e ao circo, em paralelo, até ambos se encontrarem. Falabella efetua uma homenagem ao poder transformador das artes, e à superação do real por sua representação. Reunidos para orquestrar uma farsa humilde à mãe simbólica, os artistas de circo e as prostitutas (vistos enquanto intérpretes de ficções, cada um em sua especialidade) se convertem em diretores, atores, roteiristas. O filme apela à potência da comunidade, encontrando a única forma genuína de afeto dentro destes grupos. Infelizmente, o cineasta possui a tendência a explicitar o óbvio. A exemplo dos diálogos, dá um passo além, insistindo em metáforas simples, até a poesia se perder pela insistência e pelo senso de autotradução (insinuando que o espectador, pouco inteligente, precisaria de sucessivas explicações). A eficaz Veneza circense parece insuficiente: o filme precisa de fato viajar até a cidade real, sugerindo que a ilusão criada não seria o bastante (enfraquecendo sua própria premissa). Como se a materialização do sonho ainda precisasse de reforços, os céus ganham efeitos especiais de pontos turísticos italianos se materializando. Então vem a música. E a neve. E o encontro amoroso.

O dispositivo tende à saturação, estimando precisar de ainda mais luzes, mais movimento, mais fantasia. Durante um café da manhã entre as personagens, a câmera passa a girar em torno delas, chamando mais atenção à direção de fotografia do que à conversa. Na briga com Tonho, o gigantesco tapa em Jerusa lembra as brigas artificiais das telenovelas, caso semelhante ao da briga com o pai, incluindo imagens do garoto voando por cima de uma mesa. O diretor sempre quer ir além, sem perceber que a força desta fábula se encontraria no valor humano, ao invés dos efeitos especiais. A fenomenal Carmen Maura mereceria mais do que uma dezena de cenas praticamente idênticas e uma personagem desprovida de transformação. Dira Paes, uma das melhores atrizes brasileiras, oferece uma ternura comovente a Rita, embora a direção escancare a poesia com a estranha cena dos ventiladores em câmera lenta. A obra nutre uma relação ambígua com a magia, seu verdadeiro tema. Por um lado, o roteiro defende a tese tão bela quanto ingênua a respeito da capacidade de reinvenção do mundo pela (auto)ilusão, caso em que as artes clássicas desempenhariam um papel fundamental. Por outro lado, a direção jamais se contenta com a representação oferecida pelo circo, pelo teatro e pelos atores. Neste filme de personagens, o elenco e as situações precisariam brilhar mais do que Capelas Sistinas projetadas no céu italiano.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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