Crítica


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Sinopse

Sofia caminha pelas ruas de Veneza sentindo a dor de uma perda inesperada. Ausência, silêncio, mas também destino, a vida e sua magia, a cidade, seu povo e suas ruas desconhecidas preenchem a sua fracassada estadia em uma das mais emblemáticas capitais da Europa.

Crítica

Sofia chora discretamente num quarto de hotel. Em seguida, passeia pelas ruas de Veneza, solitária, visivelmente triste. Ela parece seguir um anônimo ao acaso, mas depois desiste. Um homem vestido em uniforme do Estado a segue, acompanhando-a mesmo quando precisa fumar um cigarro. Mas quem é esta mulher, afinal? O que a jovem argentina está fazendo sozinha na Itália? Cometeu algum crime? Caso o roteiro entregasse estas respostas desde o início, o espectador observaria as mesmas imagens de maneira totalmente diferente. No entanto, o prazer do diretor Rodrigo Guerrero se encontra em reter estas informações o máximo possível, entregando apenas o necessário para que o espectador comece a lançar suas hipóteses.

Por este motivo, embora utilize as ferramentas do drama clássico – ou mesmo da tragédia -, Venezia se constrói com a tensão de um suspense, na qual todos os personagens estão alguns passos à frente do público que, no entanto, observa a protagonista o tempo inteiro. Ao invés de explicar tudo de que o espectador precisa saber, solicita uma atenção ativa, disposta a captar cada pequena insinuação, como num jogo. Talvez fosse muito mais simples apostar na linearidade explicativa, porém a montagem efetua contorcionismos para dificultar este caminho. Se Sofia atravessa um momento duro, o cineasta propõe que o senso de confusão interna se transmita pelo ritmo. Encontramo-nos numa postura ao mesmo tempo letárgica (afinal, a protagonista espera, sem sabermos o quê) e investigativa.

Enquanto isso, as imagens adotam um formato caseiro de proporção próxima do quadrado, como convém à captação digital amadora. A impressão de uma câmera caseira, na mão, se justifica não apenas pelo projeto de orçamento modesto, mas com pelo ponto de vista de uma pessoa que, a princípio, aparenta estar em férias. Guerrero explora esta possibilidade com diversos planos subjetivos através das vielas estreitas da cidade italiana. Ele oferece um inesperado filme turístico às avessas, povoado por uma mulher triste e silenciosa, sem disposição a interagir com aquele espaço, percorrendo uma cidade nublada e pouco convidativa. A nitidez excessiva da captação de baixa qualidade ressalta texturas, e também as sujeiras e imperfeições que afastam o destino europeu de sua habitual idealização.

Quando enfim juntamos as peças do quebra-cabeças, descobrimos um motivo plausível o suficiente para a tristeza de Sofia – e que não cabe revelar aqui, uma vez que o filme se esforça tanto em ocultá-lo. É suficiente dizer que, solucionado o mistério, o espectador é convidado a voltar mentalmente às cenas iniciais para compreender o comportamento estranho da protagonista. Paula Lussi oferece uma bela composição à personagem, encarregada de manter a ambiguidade de suas emoções, enquanto evidencia o desconforto em cada caminhada ou sorriso forçado para uma fotografia. Ela ostenta um misto de cansaço e desgosto, através de uma presença ausente, de olhar perdido no infinito. Ao mesmo tempo, os olhos arregalados apelam para um subtexto possivelmente tragicômico, numa chave irônica que virá a se completar no decorrer da narrativa. Lussi efetua esforço considerável para aparentar não efetuar esforço algum, como de costume em papéis complexos e introvertidos, sem cenas de catarse.

A propósito de catarses, o mais perto que Venezia chega de efetivamente permitir que esta mulher exteriorize sua dor se encontra na bela cena do bar, quando um mal entendido lhe deixa os olhos marejados. Por um instante, o som ambiente diminui, como se o filme adentrasse os pensamentos internos desta mulher. Em seguida, os ruídos voltam ao normal. Guerrero parte de uma premissa de grande potência melodramática, apenas para retirar o seu pathos. Ele busca um caminho instigante, talvez excessivamente complicado, para retratar uma dor muito pessoal revelando o mínimo necessário. O espectador é envolvido neste processo de observação voyeurista, como se invadíssemos a intimidade de uma mulher que não deseja ter sua vida exposta.

Somos ao mesmo tempo imersos e expulsos desta dinâmica, que demonstra tanto prazer em se apresentar quanto em se ocultar. Talvez as particularidades deste mecanismo constituam o elemento mais marcante de um projeto que, por trás da estrutura, revela uma premissa bastante simples. Mesmo assim, existe respeito pela introversão da protagonista, justificada ao longo da jornada, além da bem-vinda compreensão de que nem toda tragédia precisa ser abordada por via de lágrimas e de espetáculo. Ao invés de uma explosão de sentimentos, o diretor prefere filmar uma personagem que implode.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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