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Crítica


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Sinopse

A área em torno do catalão, no estado de Goiás, no Brasil, é muito seca. A vida de Sandro é um tanto monótona. Ele trabalha em uma fábrica de fertilizantes, vai nadar e passa a noite fazendo quebra-cabeças de paisagens. Sandro tem um relacionamento puramente sexual com seu colega Ricardo.

Crítica

O senso comum exige que cenas de sexo no cinema que sejam modestas e indispensáveis à trama. É de bom tom que as pessoas comecem a se beijar e depois acordem juntas no dia seguinte, num corte da montagem; que façam sexo cobertas por um lençol, que acordem vestidas, que as genitálias estejam cobertas pela sombra ou por algum objeto de cena, que a penetração seja apenas sugerida. Senão, erguem-se as vozes de que aquele momento “não era necessário”, de que o diretor “não precisava mostrar tudo isso”, tendo se tornado apelativo, grosseiro, vulgar. Nosso conservadorismo em relação ao corpo se expande à arte destinada a representá-lo: se a imagem do pênis incomoda, o que dizer de um pênis ereto exibido na tela gigantesca do cinema, a centenas de anônimos sentados lado a lado numa sala escura? A história do cinema, controlada por diretores homens e heterossexuais, habituou-se a mostrar corpos nus de mulheres, mas a nudez masculina constitui um tabu.

Ora, um aspecto louvável do filme brasileiro se encontra na maneira orgulhosa de apresentar a homossexualidade masculina na tela. Homens gays transam, se penetram, fazem sexo oral, ejaculam, alimentam os mais variados fetiches. Se estes elementos não constituem motivo de vergonha na vida, por que despertariam vergonha quando representados na arte? Vento Seco (2020) assume-se enquanto filme inequivocamente fetichista. Ele fecha os enquadramentos nos pênis dos homens no banho, nos volumes das sungas, na forma da bunda apertada pelas calças, nos pés expostos. Há fetiches de todos os tipos: o couro, a dominação, a escatologia, o “urso”, o sexo em lugares públicos, os uniformes de trabalho, o sexo na floresta, os vestiários. “Mas há justificativa para tais imagens?”, perguntariam as vozes do senso comum. Primeira contestação: por que estas imagens precisariam se justificar mais do que quaisquer outras? Precisava da câmera giratória em Cidade de Deus (2002)? Precisava da carta final em Central do Brasil (1998)? O que seria, afinal, indispensável na arte? Então o diretor retrata beijos entre homens, de perto, em close-ups, com línguas à mostra.

Existe sim, uma justificativa para a representação despudorada do sexo. O filme possui por objetivo representar o desejo e os afetos de Sandro (Leonardo Faria Lelo), funcionário de uma empresa de armazenamento de grãos em Goiás. Enxergamos o mundo pelo prisma desejante dele, ou seja, observamos os homens como parceiros em potencial para uma tarde de sexo sem compromisso. O diretor Daniel Nolasco se permite misturar o sonho e a realidade, ou naturalismo com cenas artificiais. Instantes descritos como sonhos impossíveis na vida de Sandro possuem uma consequência direta no dia seguinte, quando percebemos que realmente ocorreram. Ele teria mesmo encontrado Maicon (Rafael Teophilo) vestido de couro na saída de um supermercado? Os encontros com Ricardo (Allan Jacinto Santana) ocorreriam com tamanha facilidade e sem qualquer tipo de vigilância? A presença do clima cada vez mais seco do centro do país, a bela trilha sonora de Natalia Petrutes e alguns elementos perturbadores (o vidro de molho de tomate esmagado) permitem nos situar num ambiente misto entre pesadelo e sonho erótico.

Vento Seco constrói sua jornada subjetiva através de uma estética deslumbrante. O cineasta e o diretor de fotografia Larry Machado fazem uso criativo dos zooms no rosto expressivo de Sandro, enquanto tratam de criar coesão entre os espaços através das luzes fluorescentes vermelhas, amarelas, azuis e verdes aplicadas sobre os espaços, nos comércios, dentro dos carros. A estética caminha no limiar do plausível e do fantasista, ou ainda da decoração in loco e da luz externa, oculta, criada pela necessidade do cinema. Visto que os espaços também são elementos de fetiche, não haveria modo de retratá-los pelo filtro do naturalismo documental. Os deleites do universo gay tipicamente urbano e cosmopolita são transportados com sucesso para o ambiente rural e conservador. Talvez a questão da homofobia surja de maneira rápida demais, e a transformação do sonho de Sandro (relatado à amiga Paula e ressignificado pelo filme no tempo curto de dois cigarros) não atinja o potencial que almejava. Quem sabe, se tivesse sido colocado um pouco mais cedo na montagem... Mesmo assim, os criadores proporcionam uma linguagem coerente, onde direção de arte funde-se com direção de fotografia e produção, num trabalho de bela sintonia.

Além disso, vale dizer que este é um filme de amor e de amizades. As cenas de Sandro com Paula (Renata Carvalho) transbordam carinho, assim como os momentos em que Maicon segura a mão de Sandro na montanha-russa, ou quando Ricardo sugere a possibilidade de um namoro dentro do armazém de grãos. Estamos falando de pessoas que se amam, e para quem o sexo constitui uma parte natural do afeto. Nolasco inclui com naturalidade diversos atores e atrizes transexuais que desempenham muito bem os seus papéis, e menciona discretamente, porém com frequência, a política degradada de Goiás e a falência das relações trabalhistas. Os personagens navegam por espaços precários, sem muitas perspectivas de vida. A dificuldade de aceitação e sensação de crise podem ajudar a entender porque levam suas vidas tão intensamente, através de um hedonismo imediato. Para completar, a trilha sonora combina canções de Maria Bethânia com o sertanejo típico de Goiás, contrastando duas visões muito diferentes do amor e do romantismo. O filme oferece uma visão comovente sobre os amores no centro do país, sobre essa gente “seca”, como afirma o policial, buscando nos corpos uma forma de comunhão, escapatória e de felicidade.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.  

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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