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Na língua portuguesa, o sujeito oculto é aquele que não está visível numa frase, mas identificável pelo contexto. Fazendo uma analogia com isso, em Vesper o grande vilão da história está oculto, mas é perfeitamente reconhecível pelo contexto apresentado. Num cenário pós-apocalíptico onde as desventuras de uma menina sobrevivente se tornam protagonistas, a lógica estrutural capitalista é a principal causa da divisão social brutal entre os privilegiados e todos os demais seres humanos. Vesper (Raffiella Chapman) transita por um ambiente degradado no qual os escombros são ecos de um passado anterior à distopia. Ela cuida do pai acamado com quem se comunica por meio de um drone que lhe serve de companhia. E, de certo modo, o equipamento emancipa esse corpo adulto e inerte que sobrevive com a ajuda fundamental de traquitanas biotecnológicas. Mas, voltando ao aspecto social dessa ficção científica muito interessante, os personagens do longa-metragem moram num ecossistema insalubre, onde a vida persiste apenas por teimosia natural e/ou a engenhosidade dos desprestigiados da classe miserável. A Cidadela próxima é, por contraste, a principal antagonista desse lugar, pois uma localidade citada como próspera, relativamente rica e com alta tecnologia. Nesse sentido, os cineastas Kristina Buozyte e Bruno Samper recorrem ao modelo sci-fi que deflagra os ricos como parasitas.
Vesper segue a linha dos filmes, livros e outros tipos de meios que desenham mundos pós-apocalípticos no quais a crise extrema acentua os abismos sociais ao ponto de criar oásis burgueses encarados como objetivos por uma numerosa classe que se ocupa diariamente de sua improvável sobrevivência. Por isso a definição de que temos um vilão oculto na trama. Mesmo porque, dentro dessa perspectiva política que serve de pilar ao filme, o temível Jonas (Eddie Marsan, sempre ótimo) é o paradigma do oprimido cujo sonho é se transformar em opressor. Na cadeia social dessa realidade aos pedaços, a posição de superioridade que ele ocupa no submundo como contrabandista de sangue humano nada mais é do que uma colocação intermediária. No máximo, isso o torna apto a exercer poder diante de quem está abaixo. Sim, pois diante da Cidadela, Jonas é simplesmente um capacho detentor de migalhas que, ao grosso dessa população miserável, parece um grande acúmulo de riqueza. O presente texto está se detendo tanto no aspecto estrutural porque ele é essencial para a consistência desse mundo imaginado ao qual somos apresentados. E, o que é melhor ainda, não está nas bocas dos personagens como discurso, mas profundamente enraizado nas suas vivências. Nada contra uma abordagem mais panfletária dessa consciência social, mas aqui a sugestão cai bem.
Porém, Vesper não é apenas um filme de valor por conta de sua adesão competente ao arquétipo do sci-fi pós-apocalítico que enxerga capitalistas como tiranos extremos. Há também uma interessante jornada de personagem, mais especificamente a da protagonista que busca alternativas para a continuidade da vida na Terra. Vesper cuida diligentemente do pai, enfrenta ocasionalmente a brutalidade do tio Jonas e ainda é incumbida pelo destino de salvar a vida de Camellia (Rosy McEwen), a jovem misteriosa que cai na vizinhança ao sobrevoa-la. Vesper e Camellia têm uma trajetória paralela de crescimento que prevê o corte repentino (e doloroso) do cordão umbilical paterno e a consequente emancipação de suas personalidades. Kristina Buozyte e Bruno Samper não chegam a enfatizar o aspecto de gênero, evidentemente contido na trama. No entanto, fato é que Vesper e Camellia são mulheres com potencial para modificar positivamente o mundo, mas que para isso precisam vencer a Cidadela capitalista/cruel e os capangas que as caçam a fim de evitar uma revolução. O enredo poderia ter esses pontos simbólicos mais bem sublinhados e inflamados, mas o andamento sem grandes realces nos subtextos é coerente com a proposta narrativa interessada na construção de um painel amplo. De toda forma, essas boas “migalhas de pão” são habilmente distribuídas ao longo do caminho.
Embora seja um filme de baixo orçamento – especialmente se comparado às superproduções de ficção científica às quais somos costumeiramente submetidos no circuito comercial –, ele se sai bem no quesito credibilidade visual. Trata-se de um caso de casamento criativo entre direção de arte, figurino e fotografia a fim de garantir a sensação de que o mundo aos pedaços é crível. Ainda a respeito do departamento de arte, a construção de componentes cênicos práticos dá ao filme uma textura orgânica interessante, assim não o deixando excessivamente dependente das técnicas digitas para inserção de objetos e outros artigos em cena. A inteligência a serviço dessa combinação de aspectos pode ser observada também no privilégio do digital para itens distantes da câmera (naves em voo, por exemplo) e na utilização dos efeitos práticos quando as coisas estão mais próximas do dispositivo e, por isso mesmo, são táteis. Além disso, há discussões implícitas que, se não são profundamente desenvolvidas, ajudam a constituir esse panorama distópico bem esboçado por Kristina Buozyte e Bruno Samper. Uma das principais delas está na valorização da vida, seja ela humana, animal, vegetal ou indeterminada por conta de sua origem laboratorial. É menos brutal a cena de uma criança assassinando a facadas um ser humanoide criado para servir sem questionar? Os sci-fi de valor provocam e instigam, algo que Vesper faz.
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