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Crítica


6

Leitores


36 votos 7.2

Onde Assistir

Sinopse

Durante uma missão multigeracional para encontrar outro planeta habitável, 30 jovens são enviados ao espaço. Quando os adolescentes descobrem que estão tendo impulsos e desejos reprimidos, começa uma revolução.

Crítica

O Pecado Original é uma das principais doutrinas cristãs. Parábola mencionada em diversos trechos da bíblia, a história tem como intuito "explicar" a gênese das imperfeições humanas. Segundo ela, Adão e Eva foram expulsos do paraíso depois de descumprirem a ordem de Deus para não se aproximar da árvore do conhecimento do bem e do mal. O fruto proibido (a famigerada maçã da discórdia) simboliza tentações às quais o casal não conseguiu resistir. Viajantes: Instinto e Desejo se apropria desse conceito e o transporta à lógica da ficção científica. Por conta do iminente esgotamento da Terra, é urgente a existência de uma missão multigeracional que percorra o universo durante quase 100 anos para chegar a um novo planeta habitável pela humanidade. Em determinado ponto da trama escrita e dirigida por Neil Burguer, a tripulação formada quase inteiramente por adolescentes descobre que é diariamente sedada como medida preventiva para reprimir instintos, desejos e impulsos. E o que acontece no decorrer do filme é uma espécie de queda semelhante ao banimento de Adão e Eva do Jardim do Éden. Uma vez donos do conhecimento, os jovens cosmonautas exercem o livre-arbítrio e param com a medicação. O que se segue é uma espiral de caos, hormônios fervilhantes e experiências novas. De certa maneira, há algo de moralista na revelação descambando à possível desgraça.

O personagem de Colin Farrell é um reforço dessa adaptação da fonte religiosa ao sci-fi. Ele desempenha um papel equivalente ao do Deus benevolente que age misteriosamente e “escreve certo por linhas tortas”. Ainda que o filme dê terreno para sua conduta ser colocada em xeque, no fim das contas a mensagem que prevalece é: se a ordem for mantida, a missão será cumprida e a humanidade continuará existindo. O único adulto na tripulação é conivente com as mentiras, mas apresentado como um sujeito amoroso que pega caminhos controversos para garantir bens maiores. Ainda nesse sentido, Christopher (Tye Sheridan) e Sela (Lily-Rose Depp, filha de Johnny Depp e Vanessa Paradis) são os novos Adão e Eva. Ambos atendem ao chamado do desejo, mas são comprometidos com a bondade para garantir a fundação da civilização. Tanto que quando os supressores começam a perder efeito, ambos têm experiências sensoriais "elevadas": o toque suave da pele da mulher amada ou o cheiro agridoce da especiaria que deve ser reproduzida no futuro ambiente. Por outro lado, a ala “do mal” entre os tripulantes se apropria do sexo/gula como algo consumidor, agressivo, desenfreado, ou seja, de forma mais primitiva. E a pegada de Neil Burguer deixa muito claro quais das manifestações de desejo são consideradas boas/benéficas e as tidas como luxuriosas/excessivas e, por isso, atreladas à destruição. Esse juízo de valor implícito carrega doses de romantização e maniqueísmo (em suma, bons vs maus).

Portanto, de um lado, temos em Viajantes: Instinto e Desejo a correspondência religiosa feita de papeis, circunstâncias e sentenças reconhecíveis. Ainda nessa seara, Zac (Fionn Whitehead) é o que se deixa tomar pelo lado sombrio da natureza humana. Ele imediatamente se transforma num Anjo Caído que precisa ser derrotado para garantir a existência do paraíso prestes a ser perdido. Porém, do outro lado, temos a abertura prática à investigação sócio-política da organização reformada no interior da nave em movimento. Nesse ponto, sai como referência principal a bíblia cristã e entra O Senhor das Moscas, livro de William Golding. Assim como na obra publicada em 1954, aqui também existe uma turma de jovens inexperientes precisando fundar a sua coletividade sem supervisão adulta. As disputas territoriais, as reviravoltas, as imaturidades, os grupos antagônicos, os mitos desenvolvidos como dogmas para sustentar os discursos, tudo isso é extraído do livro como evidente inspiração. Ainda por cima, Neil Burguer faz uma curva em direção ao nosso presente, sobretudo ao enfatizar as táticas do “vilão” para garantir o poder. Zac se aproveita da dúvida quanto à suposta existência de um alienígena assassino para solidificar a sua autoridade a partir do medo. Assim como vários governantes da nossa realidade, ele logo compreende que será seguido se prometer a segurança ameaçada.

O resultado dessa mistura é um filme de tensão moderada que reafirma certas noções conservadoras, mas capaz de acenar criticamente (embora não efusivamente) às estratégias de controle das massas. Aos se apropriar de modelos religiosos, Viajantes: Instinto e Desejo é mais interessante quando incentiva por meio deles questionamentos que passam pela ignorância sobre a vastidão do universo. Ao abandonar a muito bem-vinda observação do potenciais ambíguos do desejo/instinto/natureza humana em prol da ação genérica, Neil Burguer felizmente não chega a aniquilar certas perguntas que permanecem no ar: o que define quem somos? Como mensurar a ética dos “pais” do projeto que obriga as cobaias a se tornarem peças sacrificadas em nome do progresso? Bem e mal são inerentes à nossa existência ou podem ser estimulados pela cultura ensinada? A reboque dessas interrogações fortes, ganha cada vez mais destaque a disputa entre o menino que opta pela bondade e seu rival tomado pela maldade potencialmente devastadora. Num universo de 30 personagens, a maioria deles se torna parte do cenário, ou seja, uma paisagem humana para preencher os estreitos corredores – pena, há poucas cenas que realçam a claustrofobia como elemento essencial. Tudo passa a se concentrar no Adão, na Eva e no Anjo Caído futuristas, nesse flerte simultâneo com o desconhecido e o bastante familiar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
6
Francisco Carbone
5
MÉDIA
5.5

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