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Sinopse

Moradora do subúrbio de Buenos Aires, Vicenta é uma mulher pobre e analfabeta. Ela cuida da filha de 19 anos, deficiente mental. Quando a jovem é estuprada pelo tio e engravida, Vicenta iniciar uma longa batalha judicial pelo direito da filha ao aborto.

Crítica

A proposta de um documentário em animação desperta interesse por si própria. Por um lado, o documentário sustenta a impressão popular de estar colado ao real, abrindo uma janela ao mundo com o mínimo de intervenção do criador sobre o meio. Por outro lado, a animação constitui o artifício por excelência, sobretudo dentro do stop motion. É preciso criar personagens, modelá-los, imaginar suas casas, figurinos, objetos. Os dois registros parecem se opor, no entanto, podem se complementar dependendo da adequação ao tema. No caso de Vicenta (2020), o filtro da animação serve para preservar as pessoas reais, envolvidas numa tragédia familiar e num crime de Estado. Vicenta Avendaño descobriu que a filha Laura, de 19 anos de idade, deficiente mental, engravidou após ser estuprada pelo tio. A Constituição argentina prevê o direito ao aborto neste caso, no entanto, a pressão dos homens de poder e dos grupos religiosos impediram a vítima de se beneficiar deste direito. A representação das duas mulheres por bonecos de traços simples e imutáveis permite, primeiro, preservar suas identidades e, segundo, evitar o a exploração sentimental da dupla violação.

O diretor Darío Doria efetua ótimo uso deste recurso na sequência de abertura, quando um álbum de retratos evoca a trajetória pessoal da protagonista. Sem diálogos nem explicações em letreiros, compreendemos o abandono paterno após a descoberta da deficiência da menina. Ironicamente, a ágil introdução se contrasta com o restante do filme, quando o recurso cede espaço a uma narrativa lânguida, arrastada. Talvez o projeto sequer possa ser considerado uma animação no sentido estrito do termo: uma vez criados os bonecos, cenários e espaços (incluindo repartições públicas, hospitais etc.), não há qualquer forma de transformação ou movimentação destas figuras, seja dos braços, pernas, olhares. Os personagens passam a ser representados pelo mesmo rosto e uma expressão única, imóvel, do início ao final. A câmera se desdobra como pode para efetuar movimentos em torno dos bonecos, enquanto a luz expressiva reforça o sentimento de solidão e desamparo. O recurso se esgota com rapidez: a multiplicação de sequências com corredores de arquivos, sala de casa e sala de espera idênticos impede a compreensão dos meandros jurídicos e do peso do processo sobre os personagens. Em outras palavras, o dispositivo do stop motion se repete sem se desenvolver.

Em paralelo, o próprio status de documentário poderia ser questionado. Esta seria provavelmente uma questão menor: a necessidade de separá-lo da ficção se torna secundária diante da riqueza oferecida na fronteira entre ambos. No entanto, o projeto vai além de retirar das personagens a imagem de seus rostos e corpos: ele também lhes oculta a voz. Vicenta é inteiramente narrado por uma voz feminina piedosa, dirigindo-se à protagonista e falando em nome dela. O recurso soa estranho, a partir do momento em que se conta à mulher sua própria história de vida. O texto intercala belas metáforas (“Laura cresce e não cresce”, a respeito da deficiência mental da jovem) com descrições lacônicas da busca por direitos. Para um filme tão interessado nos procedimentos e burocracias, o desprezo pelos detalhes soa contraproducente. A narração repete frases de efeito a respeito de idas e vindas a juízes e médicos, sem explicar a evolução ou involução neste percurso. O auxílio fundamental de três militantes pelo direito ao aborto é introduzido como um deus ex machina. Há notável desequilíbrio entre o tom arrastado dos esforços de Vicenta e a resolução brusca do caso. O filme aparenta ter sido esticado ao máximo para atingir a duração de um longa-metragem (69 minutos, no caso).

O problema desta narrativa lacônica e distanciada diz respeito ao tratamento humano. Vicenta e Laura jamais se tornam personagens autônomas, dotadas de voz e ponto de vista. Elas se prendem à condição de objetos de estudo, descritas em terceira pessoa. O respeito de Doria pelas duas mulheres deveria ir além de preservar sua intimidade: seria necessário permitir que se expressassem. Ora, as duas são caladas pelo dispositivo, utilizadas enquanto exemplo de uma causa. Não há qualquer forma de subjetividade ou investigação psicológica em Vicenta ou Laura. A narração oferece uma leitura protocolar de ações e atividades, na forma de um relatório: a banda sonora mantém o ritmo e estilo da leitura de uma ata de reunião. Ora, que peso este caso teve sobre Laura? De que maneira a jovem com idade mental de 8 anos sofreu, reagiu, e compreendeu o que se passava com seu corpo e seus direitos? O que levou esta mulher a abrir mão da vida profissional para combater o Estado argentino durante anos? Que convicções legais e religiosas a empregada doméstica analfabeta possuía? Por que o marido da protagonista e o filho dele são praticamente ocultados da trama? O filme limita as duas mulheres a um episódio de justiça.

Vicenta se conclui como uma obra curiosa, ousada em sua proposta de rememorar a história real. Entretanto, cabe questionar a adequação da animação ao conteúdo, sobretudo à complexidade emocional dos fatos. Animações em stop motion já deram origem a excelentes estudos sobre o medo, a morte e as lutas por direitos, sobretudo nos filmes da Laika (vide as ficções Coraline e o Mundo Secreto, 2009, e ParaNorman, 2012). Aqui, os belos bonecos construídos pela equipe se atêm à condição de fantoches utilizados na reconstituição de uma tragédia. Terminamos a história com plena ciência do conservadorismo na Argentina, e da pressão religiosa contra os direitos femininos. Em contrapartida, conhecemos pouquíssimo sobre a mãe e sua filha. A cena final com imagens em live action de Vicenta durante o julgamento se torna menos uma complementaridade do que uma confissão de limitações: precisamos enfim, após mais de uma hora de duração, enxergar esta mulher nos olhos para encontrar a emoção, a entonação da voz, as marcas no rosto, e compreender um pouco de sua luta. É uma pena que a protagonista não tenha recebido a oportunidade de se expressar no longa-metragem até então.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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