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Sinopse

Uma nova fundação do Oeste estadunidense. Em California City, cidade criada em pleno deserto, mas praticamente abandonada pelas autoridades, o jovem Lashay T. Warren sobrevive com a namorada e os três filhos.

Crítica

Em Victoria (2020), as diretoras Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere abordam uma marginalidade norte-americana ignorada até pelos holofotes da mídia. Não se trata dos imigrantes ilegais, buscando vida melhor nos Estados Unidos, nem mesmo dos mendigos e trabalhadores informais das grandes cidades. O trio se concentra no projeto falido de California City, em pleno deserto de Mojave. Os poucos moradores não têm acesso a transporte público, a boas escolas, hospitais ou centros de lazer. Eles perambulam por ruas sem placas, cobertas de terra, misturando-se as planícies secas. Para chegarem à única escola local, reservada aos jovens adultos reprovados ou expulsos das instituições regulares, os protagonistas atravessam um extinto campo de golfe durante 1h30. Há pouquíssimas casas em qualquer direção para onde se olhe. Em termos de oportunidades profissionais, Lashay Tarrell Warren, o protagonista, limita-se à tarefa ingrata e limpar os arbustos que crescem pelas avenidas, enraizados sob o asfalto empoeirado. Ao invés de serem rechaçados por alguma maioria, os personagens estão apenas abandonados ali. Não se tem notícia de polícia, igreja, prefeitura ou qualquer instituição de controle ou apoio. Vive-se cada um à sua sorte.

Para os brasileiros, o projeto remete ao hibridismo carinhoso e sofisticado de Affonso Uchôa, sobretudo em Sete Anos em Maio (2019). Inclusive, uma cena de Lashay sentado no deserto, em frente à fogueira, provoca um espelhamento fascinante entre os dois filmes. Ambos optam pela aproximação de pessoas reais, com histórias simbólicas a respeito de um projeto nacional em crise, mas jamais transformadas em denúncia ou espetacularização da miséria. Eles compartilham suas próprias histórias com tamanha desenvoltura que despertam dúvidas a respeito do nível de controle da direção sobre suas falas e gestos. De qualquer modo, a câmera está sempre próxima demais do corpo do homem de 25 anos, sem que isso provoque qualquer incômodo nele ou em seus amigos. Este constitui a proeza mais notável: atingir tal nível de cumplicidade que o aparato cinematográfico não provoca qualquer alteração substancial no ambiente à sua volta. Lashay, a namorada e os filhos agem normalmente, caminham pelo deserto através de um dispositivo curioso, mistura de rumos definidos na hora e coreografia combinada com a equipe (pois a câmera os acompanha com precisão, sem perdê-los de vista, nem encontrar problemas de som ou foco). Combina-se a espontaneidade da linguagem documental com o nível de controle estético e narrativo da ficção roteirizada.

Victoria – apelido do protagonista para a região, apropriando-se dela e ironizando a irrelevância da cidade-fantasma – se passa quase inteiramente durante o dia, em espaços abertos. As cineastas provocam a sensação de uma obra em cena única, como se os passeios dos personagens pelo terreno seco nunca começassem ou terminassem por completo. Há conflitos sociais (abandono por parte da política local, falta de oportunidades de trabalho, acesso restrito a serviços básicos), porém poucos conflitos dramatúrgicos no sentido estrito do termo. Lashay não possui algum problema a resolver, nem persegue um sonho específico. Ele não reúne dinheiro para alguma compra ou quitação de dívida. O personagem, assim como o filme, vive num tempo presente asfixiante e crônico: não se fala sobre o passado, nem se imagina o futuro. A certa altura da trama, o personagem simplesmente abandona o trabalho por tédio. Em seu diário, usado para a narração do filme, descreve em palavras sucintas as ações cotidianas e o sentimento de desolação. O jovem possui recursos suficientes para afastá-lo e da fome e do desespero, mas não o bastante para levar uma vida confortável. Ele compara a cidade a um buraco negro, tragando os elementos sem permitir que partam. Paira o incômodo presságio de que aquelas pessoas cresceram e morrerão no deserto.

O filme poderia ser encaixado dentro do road movie? Pela onipresença das estradas e pelo deslocamento sem fim, ele se encaixaria perfeitamente no imaginário do gênero. No entanto, Lashay e a família nunca caminham para um lugar específico, com algum objetivo em mente. Eles permanecem na mesma cidade. Ora, nestes projetos, costuma-se extrair grandes lições de vida diante das dificuldades do percurso, dos encontros com desconhecidos, do contato forçado com a solidão. A transformação do indivíduo em alguém melhor constitui a base otimista do road movie, porém escapa a este estudo niilista. O jovem não melhora, nem piora ao longo dos dias. A vida dele não aparenta sofrer qualquer transformação digna de nota durante os dois anos em que foi filmado e escreveu sobre sua vida. As interações com outras pessoas, ou a própria ideia de um percurso, não se aplicam a esta errância em círculos. Seria mais apropriado discutir uma marginalidade compreendida enquanto deambulação. Assim como no Cinema Marginal brasileiro, os personagens cortados do sistema andam sem parar, porém nunca saem da mesma cidade. Eles caminham pelo imperativo de se sentirem em movimento. Aliado à melodia de uma gaita, o resultado se revela bastante melancólico.

Enquanto conceito cinematográfico, o drama poderia ser considerado ao mesmo tempo despretensioso e ambicioso. A câmera acompanha Lashay durante longos minutos deserto adentro, sugerindo uma ideia de finalidade, apenas para constatarmos um deslocamento que se encerra em si mesmo. A inércia constitui o verdadeiro tema deste filme onde tudo se move a esmo – mesmo os fenos nas ruas sem nome, os pneus largados ladeira abaixo, a colega que vai à escola sem saber o porquê. As datas citadas pelo protagonista durante o ano de 2017 servem a esclarecer o contraste entre a passagem do tempo real e a impressão de estagnação. Victoria compara esta fundação falida do oeste com aquela dos pioneiros de séculos atrás, que conquistaram a terra e ganharam os livros de História. O heroísmo atribuído aos desbravadores de antigamente, que ergueram uma ideia gloriosa de nação, se perde diante da situação nada florescente do jovem funcionário. Contrárias à ideia de que a passagem do tempo implica num progresso natural das sociedades, Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere expõem um caso específico, porém universal, de crise do indivíduo dentro da nação dos self-made men e da “terra dos corajosos e livres”.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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