Crítica
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Sinopse
Depois de sofrer um sequestro relâmpago na companhia do namorado, a estrangeira Mary enfrenta uma noite de terror sob domínio de seus algozes no Rio de Janeiro. Paralelamente, uma jovem ativista negra lida com os assédios sexuais e políticos de um corrupto.
Crítica
A primeira cena de Vidro Fumê mostra uma jovem negra e periférica indo denunciar um crime. Miriam (Mari Oliveira) é uma combativa líder comunitária que não baixa a cabeça sequer para as investidas sugestivamente agressivas de um político que pleiteia a reeleição. No citado trecho da ida à delegacia, ela claramente é mal atendida pelo policial homem que lança mão de vários pressupostos machistas durante a tomada do depoimento. Logo depois, a ação do filme se concentra em outra mulher, em quase tudo diferente de Miriam. Mary (Ellie Bamber) é uma norte-americana morando na zona sul do Rio de Janeiro, praticamente de frente para o mar, mas igualmente sofre uma violência terrível, Ela é sequestrada na companhia do namorado, Gabriel (James Frecheville), por meliantes disfarçados de trabalhadores do transporte alternativo. Esse revezamento entre histórias aparentemente díspares, mas profundamente conectadas, dá a entender que o longa-metragem terá duas protagonistas. No entanto, as coisas não são bem assim. A personagem principal é Mary, sendo Miriam uma coadjuvante ocasionalmente promovida para dar ao filme acesso à periferia onde ele promove seus principais diagnósticos sociais. Grande parte do filme se passa dentro dessa van onde a estrangeira é brutalizada de diversas maneiras: extorquida, violentada, agredida verbalmente, tratada como se fosse um lixo.
Um dos grandes problemas de Vidro Fumê é a reiteração de certos estereótipos, especialmente os de cunho racial. O fato de Mary, uma mulher branca, passar a maior parte do enredo sendo agredida por homens negros corrobora um imaginário constantemente reforçado pelo racismo estrutural: o de que pessoas negras são perigosas. Como a história é baseada em fatos, alguns podem defender a ideia de que “factualmente as coisas foram assim, os bandidos eram todos negros”, mas ao diretor cabem escolhas cinematográficas para representar algo. O cinema não tem qualquer dívida com a realidade, embora possua a capacidade de moldar o nosso imaginário acerca de determinadas questões com mais força. Assim, será que não é contraprodutivo reforçar esse estereótipo ao reduzir homens negros, basicamente, a bandidos impiedosos capazes de atrocidades enquanto vítimas são brancas? Outro exemplo disso é o comportamento de Jefferson (Gabriel Leal), morador de uma comunidade e trabalhador injustiçado pelo patrão. Obrigado pela necessidade a improvisar um esquema criminoso para levantar a devida quantia considerável de dinheiro em pouco tempo, ele se comporta como bandido nato à frente da operação que deveria ser uma desesperada exceção no seu cotidiano. Não há resquício do operário angustiado pela dívida quando ele assume o papel de líder de gangue. Ele é o bandido.
A direção frouxa de Pedro Varela permite esses ruídos numa produção que tenta oferecer um diagnóstico complexo da segurança pública no Rio de Janeiro. Mesmo timidamente, ele conecta os atos espúrios dos homens que brutalizam Mary aos desmandos de uma classe política que age na clandestinidade para ampliar o seu poder e fundir oficial e extraoficial. Azevedo (Augusto Madeira), o candidato que corteja Miriam com seus discursos passivo-agressivos, é o chefe que desenha a tragédia de Jefferson e, por consequência, tudo o que Mary e Gabriel sofrem nas mãos dos sequestradores. No entanto, esse raio-X da estrutura criminal da Cidade Maravilhosa não passa de um comentário breve e pouco contundente, pois apenas reafirma lugares-comuns da associação entre classe política e ilegalidade. Nessa superficialidade está impressa a visão estrangeira do realizador, o ponto de vista externo cheio de velhos estereótipos. Voltando ao terror submetido à personagem estrangeira, Pedro também perde a oportunidade de comentar que seu martírio é fundamentalmente diferente do imposto ao companheiro. Mary sofre violências de gênero, tem o seu corpo fragilizado a todo momento por conta da opressão masculina. No entanto, em Vidro Fumê não há vontade de compreender profundamente a violência ao compartimentá-la. Para o filme, as atrocidades de gênero, classe e raça são iguais.
Então, Vidro Fumê tem um discurso falho porque simplifica situações para lá de complexas, principalmente ao colocar no mesmo balaio situações que têm raízes e implicações específicas. Um ponto positivo é o modo como o realizador consegue dinamizar as cenas dentro da van, trabalhando bem o espaço por meio da decupagem (a separação das cenas em planos), com o auxílio valioso da montagem assinada por Felipe Lacerda e João Lobo. Prova de que Pedro Varela desejava realmente associar as duas personagens femininas que vivem em opostos, mas irmanadas pela dor da selvageria de gênero, é o discurso final de uma delas. A fala, ao mesmo tempo, trata-se de um desabafo e de uma maneira de encerrar a história dolorosa com a esperança um tanto romântica de que é possível colocar as coisas nos eixos desde que vítimas tenham coragem para denunciar –é um tanto problemática a atribuição de responsabilidade pela melhora do mundo em alguém submetido a dor. Por mais que uma direção feminina não garantisse perspectivas menos reducionistas, é preciso especular uma coisa: será que o ponto de vista masculino não é preponderante para a violência de gênero, algo reiterado como importante, perder espaço na narrativa para esse diagnóstico simplista e genérico da situação da segurança pública do Rio de Janeiro? Falta um olhar menos superficial a essa complexidade.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 3 |
Robledo Milani | 5 |
MÉDIA | 4 |
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