Crítica
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Sinopse
Uma sala de estar com paredes cor de salmão, tapeçarias, bustos, plantas domésticas, um boneco de costureira. Em uma poltrona de veludo com detalhes dourados, Wilma Azevedo, 74 anos, é conhecida como a "rainha da literatura sadomasoquista". Convidada pelo diretor a contar a história de sua vida, que rapidamente se ramifica em uma série de anedotas eróticas detalhadas envolvendo bananas verdes, vibradores feitos de lixa e nervos superestimulados.
Crítica
A imagem inicial deste documentário provoca uma surpresa particular: uma senhora se encontra em primeiro plano, sentada sobre uma poltrona, enquanto uma voz atrás dela lê um conto erótico sadomasoquista. A mulher reage silenciosamente ao conteúdo narrado. Por mais estranho que pareça confrontar a personagem idosa ao conteúdo sexual, descobrimos se tratar da autora daquelas palavras, no caso, Wilma Azevedo, que se autodenomina a rainha da literatura sadomasoquista dos anos 1970, 1980 e 1990. A condição de rainha inspira o móvel semelhante a um trono de bordas douradas, onde ocasionalmente aparece uma coroa prateada. Wilma está escutando suas próprias palavras, interpretadas por Juliane Elting, atriz cujo português não é a língua materna. O dispositivo lembra uma sessão de terapia com um trono-divã, exceto pelo fato que o discurso não provém da paciente, e sim de uma fonte ao fundo, análoga a uma voz da consciência.
Através desta estrutura, a protagonista controla a imagem por completo: ela se encontra no centro do enquadramento, ora falando, ora escutando palavras escritas por ela mesma. Elting vem lhe perguntar sobre as sessões de sadomasoquismo praticadas décadas atrás; o diretor Gustavo Vinagre, em off, também demonstra respeito e cortesia ao lhe pedir que continue as lembranças passadas. Em determinado momento, é Wilma quem grita: “Corta!”. A dinâmica entre o controle cinematográfico e o controle sexual (por meio do sadomasoquismo) é bem estabelecida pelo projeto. Vil, Má (2020) se questiona quem, de fato, possui o domínio entre o diretor e a personagem, entre o filmante e o filmado. Se a direção implica numa posição de controle inerente (pelo posicionamento da câmera, pela escolha de luz e de montagem), o fato de o cinema documental se dedicar a uma mulher sadomasoquista produz fricções de linguagem muito interessantes.
Ao longo de cerca de 90 minutos, Wilma permanecerá no centro da imagem, sentada e com a mesma roupa, sugerindo (ou simulando) a captação em um único dia. Vinagre busca introduzir dinamismo através de imagens de artigos de jornal escritos pela personagem, e recortados em fragmentos que não revelem uma única fotografia por completo – novamente, o filme demonstra o prazer do controle. A existência de uma jovem atriz logo ao lado forneceria múltiplas possibilidades de encenação, comparação e recriação, no entanto Elting é subaproveitada. Suas leituras do texto são brancas, sem composição de personagem, e a interação entre ela e Wilma se revela rara e pouco frutuosa. Este é um filme sobre sexo e prazer desprovido de sexo (há fotos de natureza sexual, mas o diretor não filma nenhum ato de dor ou prazer) e de excitação: Wilma narra suas peripécias através de um linguajar formal, discorrendo sobre o “membro” dos homens e sobre os “atos” desempenhados por eles, falando em “ejaculação”, pessoas que “defecam” umas sobre as outras.
Ora, como uma escritora tão orgulhosa de suas façanhas literárias se tornaria tão acanhada ao falar sobre sexo? Ela teria, de fato, se tornado evangélica, ou esta seria mais uma mistura de realidade e ficção, a exemplo das cenas em que Wilma relata seus contos inventados como se fossem histórias pessoais? Caso tenha se convertido à religião, de que modo se deu esta transformação radical no ponto de vista sobre o sexo e o corpo? Talvez este fosse o ponto mais interessante a compreender, e que o projeto deixa de fora da montagem. A edição, aliás, possui uma estrutura curiosíssima, desenvolvendo o histórico sadomasoquista de Wilma através de suas próprias palavras, apenas para, uma vez concluída a narrativa, retornar à infância e narrar, pela segunda vez – utilizando duas vezes a mesma fala – a descoberta do prazer na infância, o primeiro orgasmo etc. Enquanto discurso e desenvolvimento de personagem, a organização resulta confusa, pois uma vez repetidas as temporalidades, não se adquire nenhum conhecimento novo sobre a personagem.
Com Vil, Má, Gustavo Vinagre prossegue em seu cinema confessional, brincando com a linguagem entre o real e a ficção. Em A Rosa Azul de Novalis (2018), ele levava o jogo do verdadeiro/falso às últimas consequências, assumindo suas recriações, investindo em cenas claramente falsas (o sexo simulado) e outras de aparência real (o sexo oral). O espectador era levado a questionar a veracidade da imagem e duvidar do valor do documentário enquanto documento propriamente dito. Ora, o filme de 2020 se mostra mais acanhado, tanto no jogo metalinguístico quanto na maneira de representar o sexo e falar sobre ele. Para uma personagem tão rica em complexidades psicológicas, históricas e religiosas, o filme constrói um retrato normalizado. Ao final, conhecemos pouco sobre a evolução dos costumes, sobre o envelhecimento e a “volta ao armário” de uma rainha do sadomasoquismo. A conexão entre a tortura sexual e aquela praticada pela ditadura militar provoca um ruído importantíssimo, que mereceria ser desenvolvido, especialmente no Brasil atual. No entanto, como talvez a personagem não deseje desenvolver o tema por conta própria, o filme não o faz. A autoria respeitosa torna-se dependente demais das iniciativas fornecidas por sua personagem. Neste jogo de dominação, ganha a senhora idosa em seu trono dourado.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 5 |
Chico Fireman | 5 |
Francisco Carbone | 7 |
Ailton Monteiro | 6 |
MÉDIA | 5.8 |
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