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Sinopse

Ao descobrir que seu maior inimigo está prestes a ser libertado da cadeia, Nate Love reúne novamente seu bando para cobrar vingança. Com homens traiçoeiros e outros de lealdade canina, se forma um time que não costuma perder.

Crítica

Podemos contar nos dedos das mãos os personagens negros proeminentes nos westerns da Era de Ouro de Hollywood. Aliás, talvez o único ator afro-americano que teve espaço (ainda assim insuficiente em comparação ao seu talento) para sobressair nos faroestes foi Woody Strode – estrela de Audazes e Malditos (1960), de John Ford. Aliás, uma exceção no gênero por escancarar justamente a discussão sobre racismo. É claro que existiam negros na imensidão do Velho Oeste. Mas eles foram subrepresentados, geralmente como subalternos no fundo das cenas. E isso evidentemente gerou a distorção no imaginário sobre o desbravamento, a falsa ideia de que a expansão dos Estados Unidos teria sido feita somente por brancos. Na verdade, esse conjunto de ações (migrações, disputas, construções de cidades, lutas por terra) essenciais à fundação do país mais poderoso do planeta também teve a participação determinante de homens e mulheres negros (isso além dos nativos). Dito isso, Vingança & Castigo parte de uma bem-vinda inversão, pois seu elenco é formado prioritariamente por intérpretes negros. Na verdade, é um timaço que conta com Jonathan Majors, Zazie Beetz, Idris Elba, Regina King, LaKeith Stanfield e Delroy Lindo, para citar inicialmente os mais conhecidos. E a história é guiada pela vingança, um gesto derivado da crença de que era preciso cobrar as dívidas assim: olho por olho, dente por dente. Questões como hombridade, paixão, companheirismo e ódio estão contempladas.

A primeira cena, que aqui podemos chamar de prólogo, é uma verdadeira carta de amor a esse gênero que se tornou aparentemente um tanto anacrônico de uns tempos para cá – terreno propício aos saudosistas e/ou aos que desejam ressignificar politicamente os velhos mitos. Uma família está sossegadamente confraternizando à mesa quando um barulho sugere a presença de estranhos. O que vemos nos próximos movimentos é a chegada dos bandidos, as ameaças veladas e a menção ao débito antigo que deve ser pago com sangue e desgraça. O que prevalece nesse instante é a construção do antagonista como alguém praticamente sobrenatural, vide a maneira como o cineasta Jeymes Samuel fraciona minuciosamente o chefe dos malfeitores. Dele somente temos vislumbres das mãos e do caminhar lento, a influência de sua presença nos capangas, o medo estampado no rosto das iminentes vítimas e as armas douradas. Puro fetiche. Há a insinuação dele ser uma lenda. É contra esse bandido que o único sobrevivente marcado na pele, Nate (Majors), precisará lutar tão logo se torne um adulto. Vingança & Castigo constrói um caminho comum nos faroestes, pois parte da oposição entre um fora-da-lei famoso e um mocinho forjado pelo sofrimento, que acha ter um “direito adquirido” de matar para recobrar a honra. Tudo converge à criação do ambiente necessário/ideal para esses mundos colidirem violentamente em algum momento do filme. E como faz diferença ter um elenco tão tarimbado, cujos intérpretes conseguem transitar organicamente da densidade emocional à sugestão de caricaturas.

Vingança & Castigo é uma produção estilizada, dos figurinos às bem escolhidas músicas da trilha sonora (pop, rap e reggae). Já a violência é bem gráfica. Diferentemente de boa parte dos faroestes clássicos, nos quais o sangue era quase imperceptível – o que transformava esses filmes brutais em programas “adequados” à toda a família –, aqui os tiros espalham suas consequências pelas terras poeirentas, as tingindo de um vermelho vivo. Em certa passagem da trama, Jeymes Samuel faz a câmera acompanhar exatamente o movimento de ir e vir da coronha da arma utilizada para espancar um bandido até a morte. Desse modo, quando alguém é alvejado, não vemos a vítima simplesmente caindo desfalecida. Pois bem, essa brutalidade acrescenta um molho contemporâneo a uma produção que visa, ao mesmo tempo, homenagear um gênero e dar visibilidade àqueles que o faroeste quase tornou invisíveis nas telonas ao longo dos anos. A trama propriamente dita não oferece tantas novidades, quando muito ensaiando (mas não desenvolvendo) uma lógica geracional para temperar a batalha entre os bandos de Ruffus (Idris) e Nate. Tanto que as figuras de um grupo equivalem às outras (ambos têm um líder, uma mulher forte, alguém rápido no gatilho e um conselheiro evidentemente fadado a morrer). Pena que esse curto-circuito geracional fique restrito à falta de ética do personagem vivido por LaKeith Stanfield, aquele que diante do jovem correspondente demonstra bem menos ética e romantismo.

O cineasta expõe a segregação em Vingança & Castigo, vide a apresentação da “cidade de brancos”, em tudo esteticamente destoante das localidades onde os moradores são majoritariamente afro-americanos corajosos. Além da questão racial, o filme aproveita para empoderar as mulheres do Velho Oeste. Se antes as figuras femininas acabavam sendo restritas ao papel da donzela em perigo, aqui Regina King e Zazie Beetz interpretam as duas faces de uma mesma moeda: elas são damas bravias que pegam em armas, demonstrando obstinação e letalidade semelhante a de seus interesses amorosos. Já a revelação Danielle Deadwyler, atriz que vive a destemida Cuffee, carrega outra possibilidade de vivência feminina nesse ambiente hostil. Ela é a guerreira que prefere se vestir com roupas comumente usadas por homens, sem que isso ofereça qualquer tipo de vantagem ou desvantagem. Ela apenas exerce o direito a escolher como se expressar publicamente. Esses são alguns componentes que dão frescor a um enredo esculpido a partir da luta pela sobrevivência, uma das matérias-primas do western. Talvez a observação da inestimável (e negligenciada) contribuição afro-americana para o desbravamento do Oeste seja peça que faltava para revigorar o cansado faroeste e devolvê-lo ao presente? Jeymes Samuel faz um filme pop, vibrante, às vezes um pouco morno, mas que suscita essa reflexão que tende a apontar um caminho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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